16 maio 2013

Vista cansada (É sempre bom lembrar, um copo vazio está cheio de ar)



“Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. 
Um poeta é só isto: um certo modo de ver. 
O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. 
Vê não-vendo. 
Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. 
Parece fácil, mas não é. 
O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. 
O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. 
Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. 
De tanto ver, você não vê. 

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. 
Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. 
Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? 
Não fazia a mínima idéia. 
Em 32 anos, nunca o viu. 
Para ser notado, o porteiro teve que morrer. 
Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. 
O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. 
Mas há sempre o que ver. 
Gente, coisas, bichos. 
E vemos? 
Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. 
Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. 
O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. 

Há pai que nunca viu o próprio filho. 
Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. 

Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. 
É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.”

(Otto Lara Resende - Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.)

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