25 janeiro 2015

A primavera (2° parte)

O mais velho era advogado renomado. O mais novo ocupava o seu tempo como atendente da Tabacaria Domênica. Sempre que podia, eu arriscava atravessar a Rua Domingos de Freitas para observar as miudezas da vitrine. Era ali que nossos olhos se encorajavam para o pecado do encontro. Não havia dissimulação. A vitrine nos nos congregava. Era como se ele tivesse o poder de nos proteger da culpa.
Não havia palavra. Dizíamos tudo com os olhos. Eu pedia perdão por não ter coragem de enfrentar meu pai. Ele perdoava. Ele pedia que eu compreendesse a sua incapacidade de trair seu irmão. Eu compreendia. Eu jurava amá-lo até o fim dos meus dias. Ele confirmava o juramento.  

Numa manhã de sexta-feira, dia em que a alma parece querer mais que o comum de todos os dias, Alberto surpreendeu-me com um gesto quase cheio de voz. Vendo que eu atravessava a rua para ficar diante da vitrine da tabacaria, correu, estendeu  os braços para dentro da vitrine e retirou um retalho de tecido, deixado á amostra um coração de chocolate que tinha uma tira de cetim carmim com os seguintes dizeres:

"Amo você e vou amar por toda a minha vida!". 

Eu sorrir também. Um sorriso único, dado ao mesmo tempo, cheio de tristeza. Os meses avançavam. Minha mãe cuidava dos preparativos para o casamento. No dia de experimentar o vestido eu emprestei meu corpo. Olhei-me no espelho e quis o esquecimento da vida. S imagem refletida era uma traição á verdade mais oculta. Eu, por fora, vestida de branco,pronta para o altar e suas festividades, mas, por dentro, viúva, mergulhada no descontentamento de ter sepultado o homem que amava, mesmo antes de ele morrer. 

Eu queria a condenação pública, o suplício das penitências, a culpa por assassinato premeditado, o cárcere, a comida amanhecida, o frio da cela, desprezo de todos. 

Quando setembro alvoreceu e demonstrou seu poder de florir a  terra árida, quando o alarido das cigarras anunciava a despudorada busca pelo amor, coloquei a grinalda na cabeça e adentrei a matriz de Santana dos Cristais. O dia era triste, tal qual a terra árida que a primavera teimava em florescer. Meu sorriso era mudo tal qual o corrimão onde padre Isidoro escorava o corpo vencido pelas artroses. Havia uma atitude vergonhosa se concretizando em mim. 


Conto "A primavera"
Livro Mulheres de aço e de flores 
Autor Fábio de Melo 



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