04 janeiro 2015

Compaixão e generosidade, da literatura para a vida

Compaixão é ter a capacidade de se colocar no lugar do outro e de sentir a sua paixão, a sua dor. É compreender o estado emocional daquele que padece e, em outras palavras, enxergá-lo.
A generosidade é a virtude de acrescentar algo ao outro, de partilhar, de deixar um pouco de si para preencher o que falta na outra pessoa. São complementares. Filhas do amor. Irmãs da bondade. A literatura é rica em personagens que nos desconcertam pelo onírico concerto de afinar o mundo.
Um dos meus livros preferidos da literatura universal é "Os miseráveis", de Victor Hugo. Uma obra recheada do melhor fermento de sonhos e canções de vida em um mundo destroçado por guerras, autoritarismos e violência.
A obra, composta de cinco volumes, foi publicada quando Victor Hugo tinha 60 anos, mas o fio da narrativa começa a germinar quando, aos 22 anos, o jovem escritor se incomoda com a situação dos prisioneiros da colônia penal de Toulon, de onde saíam os remadores para os trabalhos forçados nas galés, onde remavam com os pés atados em correntes. Tristes cenas. Restos humanos lambuzados de humilhações e dor.  
O tema social, a miséria dos excluídos, marcou a trajetória política e literária de Victor Hugo. Charles Dickens já havia mostrado uma Inglaterra diferente das cortes. Sua denúncia chegava aos que viviam invisivelmente nos submundos de Londres. 
Victor Hugo faz o mesmo em "Os miseráveis". Dramas chocantes de mulheres e homens alijados de bens materiais e de amparos humanos.
A personagem central é Jean Valjean, órfão de pai e de mãe, que foi criado por uma irmã mais velha que tinha sete filhos. Quando ela enviuvou, o menino Jean passa a ser o homem da casa. Em um dia, desesperado, sem ter dinheiro para comprar pão para a irmã e para os seus filhos, Jean furta um pão, o que lhe rende dezenove anos de prisão (cinco pelo pão e quatorze por tentar fugir). Jean passa sua juventude na prisão.
Quando, enfim, deixa o cárcere, perambula por vilarejos em busca de trabalho. É humilhado e temido por ser considerado um bandido perigoso. As portas se fecham na frieza de uma sociedade que não tolera erros alheios, embora seja farta de erros próprios, escondidos. Na sarjeta do abandono, um homem o acolhe, o Monsenhor Bienvenu (que significa bem-vindo). Ele o retira das ruas e o traz para casa para que tenha uma refeição decente e uma cama limpa para dormir. Jean come como um bicho esfomeado e fica arredio. Não acredita que alguém pudesse ser, com ele, generoso. Compaixão, ele certamente só conhecera nos idos da infância quando a irmã o acolhera.
Durante a noite, resolve furtar o Monsenhor. Recolhe o que estava à vista e sai pelas ruas frias de uma noite angustiante. É preso e os soldados o trazem para a casa do Monsenhor para que devolva o que ele furtou. Jean sabia que ficaria o resto da sua vida na prisão. Seria agora um reincidente. Se já era considerado um homem perigoso por ter furtado um pão para alimentar os sobrinhos, imagine agora que teve a ousadia de furtar um homem que lhe dera abrigo, que lhe dera alimento e conforto. Um homem importante. 
Jean está apavorado, amarrado, humilhado pelos guardas quando chega a casa do Monsenhor. Percebendo a situação, o Monsenhor agradece o trabalho dos guardas, mas diz que a prataria que o homem carregava não fora objeto de furto, mas de um presente que ele havia lhe dado. Jean arregala os olhos, desconcertado com a bondade do Monsenhor que pega mais algumas peças que, supostamente, Jean havia "esquecido". "Use a prata para se tornar um homem honesto", foi o que Jean Valjean ouviu daquele homem e o que remoeu para sempre em sua consciência.
Aqui, nesse ato de compaixão, dá-se a transformação de muitas vidas. A de Jean Valjan e a de todos os que, posteriormente, foram abraçados por sua generosidade. 

Da compaixão, nasce uma nova história

A compaixão é um sentimento essencial da convivência. Olhos de ver. Paciência. Tempo de silêncio para que a voz do outro tenha alguém onde depositar sua necessidade. Tempo de fala para que o silêncio do outro não se transforme em solidão. Presença que ameniza ausências. É como estar no deserto da dor e ver surgir o cortejo da esperança.  
Foi assim que floresceu um novo homem. Quem é Jean Valjan? Depois de conhecer o Monsenhor, é um homem sempre pronto para revelar a nobreza dos sentimentos.
Há muitas outras personagens e tramas nesse enredo fantástico de Victor Hugo. E a generosidade de Jean permeia todos os núcleos dessa narrativa. Há uma mãe solteira, Fantine, que fora abandonada pelo homem que tanto amou e que confia a criação de sua filha a um casal que, aparentemente, proporcionaria mais conforto em sua criação. Ela trabalha para pagar esse casal. Para que cuidem bem de sua filha. Somente para isso. Imaginem o que era ser mãe solteira naquela época. A filha, Cosette, na verdade, vive frágil e assustada, porque é maltratada.  Mesmo assim, canta ela a canção da esperança. Quando Fantine morre, Cosette é criada por Jean Valjan até se casar com o idealista Marius Pontmercy, um jovem que sobrevive ao sonho e à utopia de destronar o rei. Aliás, a narrativa de "Os miseráveis" ocorre entre dois episódios históricos: a batalha de Waterloo e os motins de junho de 1832, em que jovens morreram sonhando com um mundo sem privilégios nem preconceitos.
A obra é extensa, mas há um filme recente, de 2012, dirigido por Tom Hooper, que é fiel a essa linda história. Um elenco de peso com atuação irretocável: Hugh Jackman, Russell Crowe, Amanda Seyfried, Samantha Barks, Anne Hathaway, Eddie Redmayne, entre outros. 
Outros filmes e peças de teatro no mundo inteiro mostraram a ousadia de Victor Hugo em revelar a miséria humana, o abandono, a saga dos invisíveis e, mesmo assim, alimentar-nos de esperança. No final, a canção de uma vitória que não cabe nesse mundo. 
Jean Valjan aprende com o lindo gesto do Monsenhor e transforma sua vida em uma vida capaz de cuidar de outras vidas. Até mesmo diante de seu maior perseguidor, o inspetor Javert, consegue ser generoso, compreende as amarras que o impedem de entender o verdadeiro sentido da justiça. Javert se desconcerta frente ao olhar compassivo do homem que ele perseguiu a vida toda. “Ninguém pode ser tão bom quanto Jean Valjan”, rumina ele. Pode sim, especialmente se tiver em seu caminho um Monsenhor Bienvenu.
Bem-vindas a compaixão e a generosidade neste início de mais um ano. Incomodemo-nos com o aprendizado que a literatura nos proporciona. E que mais livros nos aqueçam e ampliem o nosso repertório e a nossa capacidade de contemplar e de transformar o mundo. Feliz 2015.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 04/01/2015

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