22 janeiro 2015

NO CORAÇÃO DE QUEM ESCREVE É SEMPRE INVERNO

pedro_invernoNem todas as palavras saem como ou quando deveriam. Lembro-me de um dia ter me perguntado se era possível escrever no verão, no auge de um dia quente. Questionei também se o nosso organismo tem algum termostato ou qualquer outro dispositivo interno que acione as nossas palavras em função do clima externo. Saudade, por exemplo, não combina com temperaturas acima de vinte e dois graus. Caso contrário, ela derreteria tal qual sorvete de pistache. E, cá entre nós, quem vai se dar ao trabalho de sentir saudade quando se tem um dia lindo pela frente? Vá à praia! Mergulhe! Esfrie a cabeça! Espere o inverno para senti-la.
Indo além, Realidade é uma palavra que eu só usaria se o termômetro da rua apontar 42º. Não menos. Ela fica no ponto, naquela temperatura quase insuportável, mas que te deixa um pouco de ar para refletir sobre ela. A realidade é foda. Por outro lado, Ausência se adapta tão bem com o mês de dezembro na Sibéria. Aliás, em Paris – fica mais poético. Já o Amor é uma palavra diferente. É endotérmica. Consegue se adequar à temperatura de qualquer ambiente, ao calor de qualquer emoção, à frieza de qualquer solidão. A danada sempre foge às regras. Por isso é sempre tão amada.
Fico pensando em todos os poemas que não foram escritos porque a palavra, ao sentir a pele do poeta esquentar, deu meia volta e se encaixou novamente no freezer do seu peito. E em todos os romances que ficaram mudos porque as palavras simplesmente preferiram curtir um dia de sol em um domingo tropical. Será que Tolstói teria escrito Guerra e paz com as mesmas palavras se ele fosse bombardeado por raios solares ultravioleta com os pés fincados na areia escaldante (outro adjetivo tão verão!) de Ipanema? Talvez nascesse Arrastão e sol. Da mesma forma, será que Guimarães Rosa teria encontrado as palavras que precisava para redigir Grande sertão: veredas se tivesse se entocado em algum iglu do polo norte? Teríamos então o Grande inverno: derretas
Bom saber que algumas palavras se perdem no caminho entre o coração e a traqueia e ficam em nós para sempre. Em silêncio. À espera de um ambiente que as mereça. Na escrita, a temperatura fica no corpo das letras, das palavras. Às vezes, esquenta. Às vezes, esfria. No coração de quem escreve é sempre inverno. O ambiente externo é só uma paisagem para a existência do poeta – que espera a sua vez de dialogar com o mundo. Daí nascem as mais belas canções, os mais belos poemas, os romances mais arrebatadores. Os grandes clássicos foram escritos em grandes invernos. Ué, então não existe clássico na literatura dos países tropicais? Claro que existe, mas os poetas tropicais carregam o inverno dentro do peito. Eles hibernam no verão.
Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio e  Segundo – Eu me chamo Antônio.

Fonte:  http://www.intrinseca.com.br/

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