08 março 2015

E nasceu a mulher

No livro do Gênesis, há o relato da criação da mulher. Nos mitos antigos, também. Deusas e mulheres ocupando espaços. A bela Afrodite que emergiu das espumas das águas do mar. Psiquê que foi se apaixonar pelo homem errado. Ou não. Eros era um deus eternamente menino ou eternamente belo. Adoecido, fez com que o amor desistisse de habitar os homens. E, sem amor, o que somos?
A mulher nasceu muitas vezes. Nas histórias tantas que nos contaram, a mulher teve diferentes papéis. Sofreu as dores de parir e de ser parida em uma sociedade falocrática. O homem era quem saía para a caça e, portanto, tinha a mulher como um objeto seu. Houve sociedades matriarcais, mas em menor escala. As mulheres de Atenas pouco participavam do berço da democracia. Eram os homens que divagavam em elucubrações filosóficas e decidiam nos negócios do Estado. Mulheres medievais, mortas acusadas de feitiçaria. Mulheres escravas, vítimas das dores horrendas e dos flagelos que vinham de todos os lados. De outras mulheres, inclusive. Das sinhás que odiavam as mais belas – cenas de arcadas dentárias arrancadas para que morressem de hemorragia. Tristes marcas de tempos não tão distantes. Sofrem, ainda hoje, as mulheres. Vítimas de estupros em cantos diversos desse planeta. Vítimas de companheiros violentos. Vítimas de condições desiguais no mercado de trabalho. Vítimas, enfim, de preconceitos de uma sociedade que se acostumou a privilegiar o homem.
As leis trouxeram significativo avanço, mas a prática ainda é perversa. Comportamentos inadequados demonstram uma ignorância na relação entre homens e mulheres. Discursos aparentemente generosos colocam a razão no universo masculino e a emoção no feminino. Por quê? Os homens não têm o direito de se emocionar? As mulheres não têm a capacidade de serem racionais? Tratadas como frágeis e necessitadas de cuidados são as mulheres objetos de seus “protetores”. Frágeis, somos todos nós, os viventes. E necessitamos também de cuidados, mulheres e homens. Sem que isso signifique que tenhamos um dono.
Mulheres nasceram e nascem, também, na literatura, na música, nas artes. Protagonistas de dores e amores. De odiosidades e invejas. São Capitus, Dorotéias, Marias, Macabéas, Lucíolas, Beatrizes, Cinderelas, Teresas, Gabrielas. E muitas, muitas outras. Patroas. Amantes. Amadas. Ousadas. Dissimuladas. Musas. Amaldiçoadas. Vítimas ou algozes das paixões. Ditas em versos, em verbos e palavras. “Mulher é desdobrável. Eu sou”, proclama a poeta Adélia Prado. A mulher nasceu para gerar ideias, conceitos, relações, pessoas. Mãe de seus filhos e de seus temas. Sonhadora romântica com companheiros que compreendem o chorar e o sorrir e que, também, expressem sem receios de interpretações apressadas suas dores e utopias. Na literatura de Clarice Lispector, “O destino de uma mulher é ser mulher”, vencendo os obstáculos e a complexidade de ser. Apenas ser. 
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que quer. 
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte. 
Tristeza para fazê-la humana. 
E esperança suficiente para fazê-la feliz. 
Clarice Lispector
As mulheres nascem todos os dias. Ou, no dizer de Simone de Beauvoir, "tornam-se". Mulheres nascem quando assumem o comando da própria história com a liberdade de trilhar os tantos caminhos que a conduzem ao templo da felicidade. Acompanhadas ou não. Solitárias por decisão. Mães por escolha. Livres para esculpir a profissão que lhes convém sem necessidade de autorização. A não ser aquela consentida de partilhar um projeto comum.
As mulheres nascem quando rompem os grilhões do medo de assumir o leme. De levar a nau para onde decidirem. De alcançarem patamares que, até ontem, eram de exclusividade masculina. Chegaram ao mercado de trabalho por luta e por merecimento. Tiveram que provar que são competentes. Provas tidas como desnecessárias aos homens. Mas não se importaram com isso e nasceram para um novo tempo.
Nascerão ainda, sonhamos todos, para tempos que hoje parecem frequentar as utopias, tempos de igualdade real, tempos de respeito, tempos de paz.
Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições…
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura. 
Cora Coralina
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 08/03/2015

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