29 março 2015

Sobre a lucidez e a cegueira


"Cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança." José Saramago

Há uma obra do genial escritor português José Saramago, chamada "Ensaio sobre a lucidez", que dá sequência à outra não menos importante, "Ensaio sobre a cegueira". As angústias frente aos desmandos das ações humanas no poder são as mesmas. Os eleitores, no "Ensaio sobre a lucidez", num dia cinza e chuvoso, primeiramente, demoram a ir às urnas, o que causa imensa preocupação nas autoridades. Depois saem, quase em bando, o que traz alívio. Mas dura pouco, pois a apuração mostra um número assustador de votos em branco. Convocada nova eleição, o feito piora. A população não aguenta mais os partidos de direita, os de esquerda e os do meio. Os políticos não compreendem o recado e começam a agir de forma ainda mais errática. A mentira se alastra. As ameaças, também. Até que as autoridades resolvem abandonar a cidade. Abandonada já estava ela com atitudes pouco lúcidas de seus governantes. Cegos pelo poder, inebriados pelo isolamento da realidade, enxergavam apenas seus próprios interesses e devaneios.
Lucidez vem de luz. Uma pessoa lúcida é alguém dotado de clareza, de compreensão dos fatos, de percepção da realidade. Há cegueiras em todas as áreas da atividade humana; em outras palavras, há ausência de lucidez. Parece-nos mais fácil perceber a cegueira alheia, olhar com clareza os erros dos outros e lamentar diante do que vemos. Enxergar as sujeiras que nos envolvem parece mais difícil. E esse deveria ser nosso real intento.
Os governantes nascem das comunidades onde estão inseridos. Não caem de planetas longínquos. A expressão "o poder revela o homem" parece servir a homens não preparados para o exercício do poder. Qualquer que seja esse poder. Pessoas com pouca maturidade para tal ou falta de capacidade para enxergar com clareza seus próprios erros e corrigi-los. Porque errar não é tão grave quanto a teimosia de permanecer no erro.
Pessoas revelam-se, não raro, cegas ou pouco lúcidas em cargos de comando. Agem desbaratinadas, atabalhoadas, incorretas porque não estavam preparadas para exercer autoridade. Autoridade não é um exercício de dar ordens, gritar, ameaçar. Ao contrário, é fazer com que o outro seja tão autor quanto eu da demanda que proponho, da ideia que tenho, da ação que realizo. É conquistar o outro para as teses que me parecem mais corretas no exercício do poder. É envolver com honestidade meus governados. Sem mentiras. Sem apelações. Sem arrogâncias. Uma das formas mais comuns da cegueira, no exercício do poder, é a arrogância. O arrogante é dono da verdade. É incapaz de ouvir o clamor daqueles que "votam em branco", é ausente na escuta democrática, porque imagina saber tudo. O mentiroso é,também, cego. Cria histórias e delas fica refém para se manter no poder. O que ameaça e persegue, da mesma forma, sofre de ausência de lucidez, porque é incapaz de se sentir tão humano quanto seu liderado. Assim também são os perversos, os que gastam o tempo tentando amealhar maldades sobre seus concorrentes. Os cargos passam, a essência humana fica. Apoderar-se do cargo é prova de cegueira. Compreender a efemeridade de cada posição ocupada é prova de lucidez.
Valem estas modestas reflexões para todos os exercícios de poder. Para aqueles que administram empresas ou governos, para os que lideram pessoas em companhias ou nas famílias, os que dirigem pelotões ou grupos de voluntários. O líder não é agressivo, não impõe medo, não se distancia da verdade. Ao contrário, o líder é admirado pela lucidez de suas falas e pela coerência de suas atitudes. É educado para ser competente, humilde e amoroso. É cuidadoso com o que não lhe pertence, mas que cabe a ele administrar.
Somos todos passageiros do tempo. Não permanecemos eternamente nos cargos que ocupamos nem no espaço fascinante deste mundo. Não agarramos o poder e nem a idade que nos convém. Vamos envelhecendo, e os dias vão escorrendo de nossas mãos. Cegos seremos, se nos sentirmos donos do mundo ou das pessoas. Bendita lucidez que faz com que nos reconheçamos pequenos diante da história e, ao mesmo tempo, capazes de gigantescos gestos de bondade. Lúcidos,comandamos melhor o nosso destino e as pessoas que, por alguma razão, estão sob nosso cuidado.
Lembremo-nos de Mandela governando com olhos de amor seu ferido povo. Lembremo-nos de Dulce, a irmã que exercia o poder da caridade. Ou de algum conhecido nosso, anônimo,  que consegue ver os desvarios dos outros e prosseguir lúcido.
Das casas nossas e dos outros, nascem os que governam. Cuidemos, então, da educação. Quem sabe amanhã a lucidez seja uma companheira mais frequente do que a cegueira.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 29/03/2015

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