06 maio 2015

Acordes de esperança

Há uma esperança sendo acordada nas terras do Irã. Um país que teve uma das civilizações mais sofisticadas do passado viveu e vive tempos em que a liberdade é como aquela flor do poema de Drummond. Aquela flor que nasceu na rua. Fala o poeta das cartas que não foram escritas nem recebidas. Fala dos homens que voltam para casa e do tédio que abate a cidade. Ausência de liberdade.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Na época em que  Carlos Drummond de Andrade escreveu esse poema, o mundo vivia sufocado entre as duas grandes guerras, e o Brasil estava mergulhado na ditadura. "Tédio, nojo, ódio" referem-se à opressão, ao ar rarefeito da autonomia. Parecíamos estar condenados a nunca mais compreendermos o sentido da paz. Viver em meio a medos não é viver. 
Voltemos ao Irã.
O governo moderado (é o que parece) de Hassan Rouhani convidou para o renascimento da Orquestra Sinfônica de Teerã - uma das mais antigas da região e que havia sido encerrada por conta da dureza do regime - o maestro Alexander Rahbari que vivia no exílio desde 1970. Um dos maiores nomes da música de seu país, ele regeu orquestras pelo mundo todo, mas longe de casa. Forçadamente, longe de casa. "Uma flor furou o asfalto" em um país que ainda vive de proibições. Há muitos céticos quanto ao início da abertura no Irã. Crimes contra os direitos humanos continuam sendo cometidos. A liberdade de expressão está longe de encontrar eco por lá. O medo frequenta os jovens que viveram dias horríveis quando alguma esperança surgia.
Há um filme recente de Richard Raymond, "O dançarino do deserto", que conta a história de Afshin Ghaffarian, um iraniano rebelde que desafia as leis e obedece ao chamado interno de sua vocação, a dança. Dança no deserto de um povo oprimido. Sofre as consequências. Encontra apoio em outros jovens feridos, no corpo e na alma, por quererem viver. O dançarino mora, hoje, em Paris, assim como o maestro, que foi morar na Áustria. Fizeram sucesso, mas longe de casa. E como é triste viver longe de casa. Como é triste viver de culpas e de medos. Saber que há algo que o dominador determina e que o dominado não tem sequer o direito de compreender. Os regimes totalitários de qualquer lugar, sob qualquer justificativa, negam o que de mais belo o ser humano tem, sua individualidade, seu jeito de ser único no mundo que o faz criativo e criador. De textos da escrita ou da vida, de acordes de músicas ou de primaveras que surgem para mostrar que o frio está indo embora. Dor e amor. Livremente. Chamas incandescentes de esperança que iluminam um lugar ou uma história. Com multidões de compositores. Afinal, convence-nos Almir Sater,
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz
"Uma flor furou o asfalto", e a orquestra deu os seus primeiros acordes há poucos dias. E acordou, quem sabe, a liberdade. Tocaram a Nona sinfonia de Beethoven. As mulheres estavam de véus. Algumas, ao violino, reclamavam que o véu atrapalhava a performance. Mas estavam lá. As flores demoram um pouco a desabrochar. Não há de se ter a ingenuidade de acreditar que a volta de uma orquestra resolva todos os problemas de um país. Drummond também não acreditava nisso quando rabiscou o poema. Trata o seu texto de opressão, de tristeza, de incompreensão diante da maldade dos que usam o poder para sufocar qualquer nota que entendam destoante. Nada entendem os que oprimem sobre a diversidade de possibilidades dos sons, das canções, das notas. Notam nada da tristeza que provocam. Perdem a capacidade de compaixão. Desconsideram a dor do outro. O poeta sabia disso tudo, mas vislumbrava uma saída.
Os tons desacertados do Irã repetem-se em outros países e no nosso também. Desacertamos todas as vezes em que oprimimos o outro, por qualquer razão. Mas, também por aqui, uma flor é capaz de furar o asfalto e de anunciar nossa capacidade de compor uma melodia melhor, uma história construída por livres e apaixonados protagonistas. Afinal, o que se quer, por lá e por aqui, é mais simples do que convenções e proibições: "Ser feliz"!
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 03/05/2015

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