20 setembro 2015

Lembranças e esquecimentos

Lembrar é uma das possibilidades da razão. Lembrar é revisitar o passado e encontrar significados no existir. Existimos instante a instante. Alguns revelam surpresas agradáveis, outros trazem dor. Instantes em que a vida é gerada. Instantes em que palavras de amor são proferidas. Instantes em que encontros marcam, para sempre, nossa trajetória. Quantas vezes agradecemos por ter conhecido alguém que nos ressignificou o sentido da palavra amar ou conviver ou cuidar ou partilhar a vida. Estávamos desprevenidos, distraídos, talvez, e alguém chegou. E mudou outros tantos instantes que se somaram e se somam à nossa vida.

Conquistas inesperadas. Portas que se abriram depois de outras que, subitamente, foram fechadas. Sem nossa autorização. Invasores dos nossos espaços nos fazem mal. Por que chegam? Por que incomodam tanto? Mas é assim. Não controlamos o outro nem suas flechadas. E, aí, vem a queda. A dor. A ferida aberta. Esquecer os que nos feriram? Esquecer as feridas? Não se trata de uma simples decisão. Trata-se de maturidade. Não é prudente recordar o tempo todo do tempo da dor. A dor ficou por um tempo e depois se foi. E agora há outro tempo. Outro instante.


Colecionadores de dores não prosseguem, não evoluem. As tristezas poetizam a vida e, portanto, têm razão de ser. Nesses instantes, recordamo-nos de nossas fragilidades e pedimos ajuda. A Deus. A um amigo. A um amor. Deitamos no colo materno e recebemos autorização para chorar. Licença para nos incomodar com o que nos incomoda, sabendo que aquele colo não nos expulsará antes do tempo. Mas há um tempo para o choro. Os exageros dramatizam demais a vida e prologam o desnecessário. Afinal, depois do instante de dor, vem o instante de algo novo. E outro algo novo. E assim, sucessivamente, em cada instante. É de amanhãs que o hoje está grávido. Os amanhãs nascerão. Dias se renovam. Pessoas, também. Dias se renovam com a lógica da natureza. Pessoas nem sempre. Se nos prendermos a lembranças ruins, as novas não poderão chegar. Se nos trancarmos, quem haverá de nos descobrir?
Colecionadores de dores não prosseguem, repito. E é preciso prosseguir. Independentemente do tamanho da ferida que se abriu. Um dia, no tempo do aconchego, podemos relembrá-la, mas a lembrança não causará o mesmo estrago. Será um outro tempo. E teremos esquecido parte do que deveria ter sido esquecido.
Um dia, ouvi de uma mãe de 4 filhos, todos eles nascidos de parto normal, sobre o milagre que é a lembrança do nascimento dos filhos sem a lembrança da dor imensa que os trouxe à vida. A vida nova chegou com tanta força que os sofrimentos ficaram intimidados de prosseguir sendo lembrados. É assim, também, nos sofrimentos que preparam o atleta, na disciplina que exaure o bailarino. Mas os ensaios ganham significado quando a arte nasce. E nasce com tamanha força que os esforços exagerados dos treinos dão lugar às lembranças das comemorações.
Lembrar é vital. Alimenta-nos. Recordar o que fomos e o que somos nos ajuda a continuar. Mas esquecer também é essencial. Que fiquem as cicatrizes, mas que não ganhem de nós mais atenção do que necessário. Se sofremos, não somos os únicos. O sofrimento não é um privilégio de alguns. Se sofremos injustamente, outros também beberam do cálice da injustiça. Mas também amamos e fomos amados. Também plantamos e colhemos. Também sorrimos, o sorriso bom dos instantes que nos surpreenderam com gestos e palavras de amor.
Lembranças e esquecimentos. Celebrar e relevar. Porque os instantes merecem ser vividos. Revividos. E relevados. Releve as sujeiras que enfearam instantes do seu caminho. E prossiga celebrando as limpezas. As belezas. Há beleza por toda parte, a todo instante. Disso, é bom não se esquecer. 
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 20/09/2015

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