21 novembro 2016

A ÁRVORE DE NATAL NA CASA DE CRISTO (Fiodor Dostoievski)

Uma História Comovente! 



Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou
menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio.
Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma
espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um baú, por
tédio, soprava esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo se esfumar. Mas bem que
gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, durante a manhã, tinha se
aproximado do catre, onde, num colchão de palha, chato como um pastelão, com
um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se
encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra cidade e
subitamente caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na
antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se aproveitarem
também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado cozinhava a bebedeira há
dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela festa. No outro canto do quarto
gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido babá e que
morria agora sozinha, soltando suspiros, queixas e imprecações contra o garoto,
de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha. No corredor ele tinha
encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e
mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a
obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha caído a
noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe, admirou-se
muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes. "Faz muito frio
aqui", refletia ele, com a mão pousada inconscientemente no ombro da morta;
depois, ao cabo de um instante, soprou os dedos para esquentá-los, pegou o seu
gorrinho abandonado no leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por
sua vontade, teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da
escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o
cão não se encontrava ali, e o menino já ganhava a rua.
Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido, De lá, de
onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda a rua.
As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos postigos; desde o cair
da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda gente permanece bem
enfunada em casa, e só os cães,às centenas e aos milhares,uivam, latem, durante
a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de comer... ao
passo que ali... Meu Deus! se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer! E
que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos,
carruagens... e o frio, ah! este frio! O nevoeiro gela em filamentos nas narinas
dos cavalos que galopam; através da neve gelada o ferro dos cascos tine contra a
calçada; todos se apressam e se acotovelam, e, meu Deus! como gostaria de
comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos doem! Um agente de
policia passa ao lado da criança e se volta, para fingir que não a vê.
Eis uma rua ainda: como é larga! Vão esmagá-lo, certamente; como todo
mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é claro! Que é aquilo ali?
Ah! uma grande vidraça, e atrás dessa vidraça um quarto, com uma árvore que
sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos
objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No quarto
há crianças que correm; estão bem vestidas e muito limpas, riem e brincam,
comem e bebem alguma coisa. Ali uma menina que se pôs a dançar com um
rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da vidraça. A criança
olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos seus pobres pezinhos doem e os
das mãos se tornaram tão roxos que não podem se dobrar, nem mesmo se
mover.
De repente o menino se lembrou de que seus dedos doem muito; põe-se a
chorar, corre para mais longe, e, através de uma vidraça, avista ainda um quarto,
e neste outra árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades, bolos
de amêndoa, vermelhos, amarelos, e sentadas estão quatro formosas damas que
distribuem bolos a todos os que se apresentem. A cada instante, a porta se abre
para um senhor que entra. Na ponta dos pés, o menino se aproximou, abriu a
porta e bruscamente entrou.
Hu! com que gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou
logo, meteu-lhe furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a
porta da rua. Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um
tilintar sonoro: ele não pôde fechar os dedinhos para segurá-la.
O menino apertou o passo para ir mais longe — nem ele mesmo sabe
aonde. Tem vontade de chorar; mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando
os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abandonado, quando, de
repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém, que olha
com curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três grandes bonecos
vestidos com roupas vermelhas e verdes e que parecem vivos! Um velho sentado
parece tocar violino, dois outros estão em pé junto de e tocam violinos menores,
e todos maneiam em cadência as delicadas cabeças, olham uns para os outros,
enquanto seus lábios se mexem; falam, devem falar — de verdade — e, se não
se ouve nada, é por causa da vidraça.
O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas, e, quando
finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a rir. Nunca tinha
visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que existissem! Certamente,
desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver esses bonecos! De
repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque grande,
malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça,
derrubou seu gorrinho e passou-lhe uma rasteira. O menino rolou pelo chão,
algumas pessoas se puseram a gritar: aterrorizado, ele se levantou para fugir
depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o
portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de
lenha. "Aqui, pelo menos", refletiu ele, "não me acharão: está muito escuro."
Sentou-se e encolheu-se, sem poder retomar fôlego, de tanto medo, e
bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar, as mãos e os
pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor, como perto de uma
estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e dormiria! Como seria bom
dormir nesse lugar! "Mais um instante e vou ver outra vez os bonecos", pensou o
menino, que sorriu à lembrança: "Podia jurar que eram vivos!"
... E de repente pareceu-lhe que a mãe lhe cantava uma canção. "Mamãe,
vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!"
— Venha comigo, vamos ver a árvore de Natal, meu menino —
murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.
Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então
acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o
abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo... Que claridade! A maravilhosa
árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca tinha visto árvoressemelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo brilha, tudo
resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos — mas não, são meninos e
meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas brincadeiras de
roda, abraçam-no em seu voo, tomam-no, levam-no com eles, e ele mesmo voa
e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.
— Mamãe! mamãe! Como é bom aqui, mamãe! — exclamava a
criança. De novo abraça seus companheiros, e gostaria de lhes contar bem
depressa a história dos bonecos da vidraça...
— Quem são vocês então, meninos? E vocês, meninas, quem são? —
pergunta ele, sorrindo e mandando-lhes beijos.
— Isto... é a árvore de Natal de Cristo — respondem-lhe. — Todos os
anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que
não tiveram sua árvore na terra...
E soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora
crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde tinham
sido abandonados nos degraus das escadas dos palácios de Petersburgo; outros
tinham morrido junto às amas, em algum dispensário finlandês; uns sobre o seio
exaurido de suas mães, no tempo em que grassava, cruel, a fome de Samara;
outros, ainda, sufocados pelo ar mefítico de um vagão de terceira classe. Mas
todos estão ali nesse momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo,
e Ele, no meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e às pobres
mães... E as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e
choram; cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para
elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas,
recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...
E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de
uma criança gelada junto de um monte de lenha. Procurou-se a mãe... Estava
morta um pouco adiante; os dois se encontraram no céu, junto ao bom Deus.
FIM

Fiodor Dostoievski

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