29 novembro 2015

Arrume o relógio

Perguntou-me um senhor se eu sabia onde havia um relojoeiro. Disse-lhe que sabia e expliquei como chegar até ele. Agradeceu e explicou-me que, ultimamente, ninguém se preocupa em arrumar as coisas. Jogam-nas no lixo e querem novidade. O relógio que precisava de conserto era do filho. O filho queria comprar outro, e ele disse que não. "Arrume o relógio, meu filho!”.
Ouvi aquele senhor que parecia precisar de algum ouvinte. Como estava atento, ele colocou-se a falar de outros temas. Reclamava, com elegância, dos que não gostam de arrumar as coisas. "Antigamente, havia um valor afetivo em cada bem que possuíamos. Guardávamos objetos dos nossos avós, dos nossos pais com algum respeito."
Fez gestos agradecidos pela atenção e seguiu, em passos vagarosos, rumo ao relojoeiro. Afinal, tinha um objetivo naquela manhã, quase um compromisso, arrumar um relógio.
Saí da despretensiosa prosa pensando na sua calma e no seu comedimento ao criticar a sociedade dos descartáveis em que vivemos hoje.
 Arrumar um relógio. Não. Não se tratava apenas de arrumar um relógio. Tratava-se de um olhar para os costumes, para os valores que damos às coisas. Para o tempo dispensado a recuperar um bem e não a , simplesmente, substituí-lo.
Passemos das coisas às pessoas. O que é mais fácil, arrumar uma pessoa nova e descartar a que está, em nossa opinião, estragada, ou dar-lhe a chance de consertar o que não vai bem? Arrumar pessoas é mais complexo do que arrumar relógios. Requer mais tempo. Tempo que não se mede olhando para relógios, mas para o tempo das pessoas.
Namoros são descartados com muita facilidade. Há desculpas de todas as ordens. Necessidades de conhecer outras pessoas, liberdade de curtir a vida, falta de paciência de estar na rotina do mesmo enlace. Amigos também são descartados se dão trabalho. Não há lojas que consertem amigos nem lojas que consertem relações. Não se pode deixar lá e pegar depois como se faz com um relógio. Relações são consertadas em concertos de amor. É como uma orquestra de barulhos bons que nos remete à música composta por nossas histórias comuns. Baladas tristes e alegres. Caminhos que nos fizeram desejar estar juntos. 
Descartar um amor, um amigo, um alguém, por imperfeições, demonstra desconhecimento da natureza humana. Somos imperfeitos como condição de existência. Não fosse assim, nada precisaríamos aprender. Não fosse assim, nasceríamos prontos. 
Nos relógios em que vemos as horas, contamos as que desperdiçamos com bobagens e as que usamos para cultivar os afetos que nos sinalizam os caminhos da perfeição, Somos imperfeitos em busca da perfeição. E isso é bom. É bom quando sabemos. Não apenas onde ficam os relojoeiros, mas onde ficam as aprendizagens que nos ajudam a perceber o que devemos fazer com as horas que temos para existir.
No poema “Ah! Os relógios”, roga o poeta Quintana a seus amigos:

Amigos, não consultem os relógios 
quando um dia eu me for de vossas vidas 
em seus fúteis problemas tão perdidas 
que até parecem mais uns necrológios... 

Porque o tempo é uma invenção da morte: 
não o conhece a vida - a verdadeira - 
em que basta um momento de poesia 
para nos dar a eternidade inteira. 

Inteira, sim, porque essa vida eterna 
somente por si mesma é dividida: 
não cabe, a cada qual, uma porção. 

E os Anjos entreolham-se espantados 
quando alguém - ao voltar a si da vida - 
acaso lhes indaga que horas são... 

(Mário Quintana, in 'A Cor do Invisível' )

Bobagem viver consultando as horas. Bobagem descartar pessoas. Farão falta. Muitas partem sem que possamos decidir. As que ficam que fiquem nos ajudando a prosseguir. Prosseguir de mãos dadas, com ou sem relógios.


Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 29/11/2015

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