16 novembro 2014

O último voo do poeta

Nosso poeta Manoel de Barros voou. Estamos comovidos, em silêncio, buscando ouvir o último ruflar de suas asas. Nosso poeta desejou tanto usar “palavras de ave para escrever”; mas cometeu muito mais do que isso: suas palavras se fizeram asas para além do voo. E permanecem no ar, ora soltas, ora em frases, desafiando-nos a capturá-las. O poeta, que nasceu menino, partiu menino. Fez de sua maturidade a sua segunda infância; uma vida em poesia. Fez de sua arte um brinquedo. Despojado de regras e convenções, descontruiu a linguagem, poetizou a natureza e o mundo, vestiu de singeleza as palavras. Fez da vida sua arte de simplicidade. Dizia que sua poesia era difícil de ser compreendida, embora fosse feita com palavras simples. Muitos não entendiam essa declaração. Mas é preciso fazer-se criança para compreender. Admirar-se. Encantar-se. Desinventar-se. 
Manoel de Barros nasceu às margens de um rio, cresceu menino do mato e amigo do silêncio. A palavra sempre foi seu jogo predileto. Durante a semana, a escola ocupava seu tempo, mas, nos fins de semana, eram os jogos de futebol e os livros do padre Antônio Vieira que o envolviam. Mas antes de testar em versos os “seus deslimites”, estudou Direito, formou-se e passou por uma dezena de empregos. Não via prazer em nada daquilo. Queria mesmo era “usar palavras de ave para escrever”. Ter liberdade para redescobrir a vida em versos. A vida de amor ao lado de dona Stella, sua doce e cuidadosa ‘Dona Pássara’. Quando se conheceram, há mais de 60 anos, Manoel era vendedor de imóveis. Stella estava decidida a não se casar. Procurava um lugar para morar sozinha. Manoel, em vez de encontrar um apartamento para ela, abriu as portas de uma vida a dois. Foram para o Pantanal. Cultivaram a terra e seus frutos. Um deles, o tempo para a literatura. Manoel passava os dias em seu escritório. No seu “lugar de ser inútil”, como gostava de dizer. O desabrochar de seus poemas se dava nos blocos de papel que ele mesmo fazia. Passava horas para desenhar um verso. A lápis. Livre de qualquer paradigma. E, assim, voava observando pedras, sapos, galinhas e amanheceres. Coisas “desimportantes”, segundo ele.
Manoel de Barros colhia na natureza a singeleza da vida e a beleza de seus poemas. Desejava que um “passarinho escolhesse a sua voz para seus (meus) cantos”. Acreditava que “falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores/ Faz comunhão com as aves/ Faz comunhão com as chuvas (...)”. Ele olhava para o que poucos percebem. E assim aumentava o mundo e sua singeleza. Em seus versos, as coisas, a natureza e os homens se misturam em uma sinestesia de cores com cheiros, de olhares que falam. Depois de seus poemas, somos outros, alargamo-nos. Entramos riacho e saímos rio. Sua arte muda nosso jeito de ver. De sentir. De viver. Manoel era de sorriso largo. De esticar horizontes. Cresceu menino. E, menino, despediu-se de nós, na última quinta-feira, aos 97 anos. O poeta que nunca gostou que colocassem data na existência vive, para sempre, no quando.
Enquanto ele nos faz saudade, certamente, está dando boas risadas, “conversando sobre nada e passarinhos”, de olhos dados com seu grande e amado amigo Bernardo, personagem de tantos de seus escritos. O pássaro voltou ao ninho e, de lá, pousado em algum tronco de árvore, ainda nos ensina a compor silêncios com suas palavras.   

As bênçãos 

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.
Manoel de Barros

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 16/11/2014 | Foto: Divulgação

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