O último voo do poeta
Manoel de Barros nasceu às margens de um rio, cresceu menino do mato e amigo do silêncio. A palavra sempre foi seu jogo predileto. Durante a semana, a escola ocupava seu tempo, mas, nos fins de semana, eram os jogos de futebol e os livros do padre Antônio Vieira que o envolviam. Mas antes de testar em versos os “seus deslimites”, estudou Direito, formou-se e passou por uma dezena de empregos. Não via prazer em nada daquilo. Queria mesmo era “usar palavras de ave para escrever”. Ter liberdade para redescobrir a vida em versos. A vida de amor ao lado de dona Stella, sua doce e cuidadosa ‘Dona Pássara’. Quando se conheceram, há mais de 60 anos, Manoel era vendedor de imóveis. Stella estava decidida a não se casar. Procurava um lugar para morar sozinha. Manoel, em vez de encontrar um apartamento para ela, abriu as portas de uma vida a dois. Foram para o Pantanal. Cultivaram a terra e seus frutos. Um deles, o tempo para a literatura. Manoel passava os dias em seu escritório. No seu “lugar de ser inútil”, como gostava de dizer. O desabrochar de seus poemas se dava nos blocos de papel que ele mesmo fazia. Passava horas para desenhar um verso. A lápis. Livre de qualquer paradigma. E, assim, voava observando pedras, sapos, galinhas e amanheceres. Coisas “desimportantes”, segundo ele.
Manoel de Barros colhia na natureza a singeleza da vida e a beleza de seus poemas. Desejava que um “passarinho escolhesse a sua voz para seus (meus) cantos”. Acreditava que “falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores/ Faz comunhão com as aves/ Faz comunhão com as chuvas (...)”. Ele olhava para o que poucos percebem. E assim aumentava o mundo e sua singeleza. Em seus versos, as coisas, a natureza e os homens se misturam em uma sinestesia de cores com cheiros, de olhares que falam. Depois de seus poemas, somos outros, alargamo-nos. Entramos riacho e saímos rio. Sua arte muda nosso jeito de ver. De sentir. De viver. Manoel era de sorriso largo. De esticar horizontes. Cresceu menino. E, menino, despediu-se de nós, na última quinta-feira, aos 97 anos. O poeta que nunca gostou que colocassem data na existência vive, para sempre, no quando.
Enquanto ele nos faz saudade, certamente, está dando boas risadas, “conversando sobre nada e passarinhos”, de olhos dados com seu grande e amado amigo Bernardo, personagem de tantos de seus escritos. O pássaro voltou ao ninho e, de lá, pousado em algum tronco de árvore, ainda nos ensina a compor silêncios com suas palavras.
As bênçãos
Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.
Manoel de Barros
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 16/11/2014 | Foto: Divulgação
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