Não havia palavra. Dizíamos tudo com os olhos. Eu pedia perdão por não ter coragem de enfrentar meu pai. Ele perdoava. Ele pedia que eu compreendesse a sua incapacidade de trair seu irmão. Eu compreendia. Eu jurava amá-lo até o fim dos meus dias. Ele confirmava o juramento.
Numa manhã de sexta-feira, dia em que a alma parece querer mais que o comum de todos os dias, Alberto surpreendeu-me com um gesto quase cheio de voz. Vendo que eu atravessava a rua para ficar diante da vitrine da tabacaria, correu, estendeu os braços para dentro da vitrine e retirou um retalho de tecido, deixado á amostra um coração de chocolate que tinha uma tira de cetim carmim com os seguintes dizeres:
"Amo você e vou amar por toda a minha vida!".
Eu sorrir também. Um sorriso único, dado ao mesmo tempo, cheio de tristeza. Os meses avançavam. Minha mãe cuidava dos preparativos para o casamento. No dia de experimentar o vestido eu emprestei meu corpo. Olhei-me no espelho e quis o esquecimento da vida. S imagem refletida era uma traição á verdade mais oculta. Eu, por fora, vestida de branco,pronta para o altar e suas festividades, mas, por dentro, viúva, mergulhada no descontentamento de ter sepultado o homem que amava, mesmo antes de ele morrer.
Eu queria a condenação pública, o suplício das penitências, a culpa por assassinato premeditado, o cárcere, a comida amanhecida, o frio da cela, desprezo de todos.
Quando setembro alvoreceu e demonstrou seu poder de florir a terra árida, quando o alarido das cigarras anunciava a despudorada busca pelo amor, coloquei a grinalda na cabeça e adentrei a matriz de Santana dos Cristais. O dia era triste, tal qual a terra árida que a primavera teimava em florescer. Meu sorriso era mudo tal qual o corrimão onde padre Isidoro escorava o corpo vencido pelas artroses. Havia uma atitude vergonhosa se concretizando em mim.
Conto "A primavera"
Livro Mulheres de aço e de flores
Autor Fábio de Melo
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