A primavera ( última parte)
Um passo incerto e absolutamente contraditório ás razões mais ocultas do coração conduziram-me aos braços do filho mais velho de Estevão Bittencourt. Quem me dera extrair coragem, a mesma que convencia a terra árida a deixar-se colmar de cores, e unir meu canto ao canto das cigarras ressurretas para gritar em alto e bom som que o meu coração já tinha dono, e que eu gostaria de trocar a grandeza do filho mais velho pela fraqueza do filho mais moço. Haveria algum problema para meu pai? Só trocaria um pelo outro. Eu me casaria do mesmo jeito. As consequências, saberias vivê-las com imensa felicidade. A vida simples, a casa de aluguel, a necessidade de trabalhar para ajudar Alberto com as despesas. Duas ou três mudas de roupa, as mãos grossas, o cansaço ao fim do dia. A vida, e só.
Quando setembro começava a mostrar os primeiros sinais de que a terra venceria mais uma vez os castigos do inverno, quando a ciranda do tempo acenava para a chegada da estação das flores, meu marido recebeu a notícia de que a mais de cinco anos, Jordano Bittencourt, seu tio, havia morrido. Vítima de uma febre misteriosa, não deixara herdeiros. Solteiro, dividia a vida e os trabalhos com o sobrinho, Alberto. O motivo da notícia não era comunicar a morte do tio, mas sim a enfermidade do irmão mais novo.
Sozinho naquelas terras, Alberto estava tuberculoso e sem ninguém que lhe dispensasse cuidados. Era o único irmão. Com os pais já falecidos, restava ao meu marido a responsabilidade de tomar as devidas providências. Numa tarde de primavera prenunciada, olhou-me com receios e perguntou-me se eu me importaria em ajudar a cuidar de seu irmão mais novo. Com o coração batendo na boca e sem nem uma condição de falar, limiteime a responder sem palavras.
Quando amanheceu o dia 22 de setembro, data que marcava o inicio da primavera, o carro vindo de tão longe parou á porta de minha casa. Um ruído seco de malas de couro era a trilha que acompanhava a cena. Eu, de pé parada na janela principal, e com o rosto entre as cortinas, procurei enxergar o que o coração viu a vida inteira, mesmo a distância.
Alberto estava mais franzino. O rosto envelhecido conservava o aspecto de menino solitário. O terno simples, os sapatos sem luxo e o chapéu reservado para ocasiões , conferiam-lhe a mesma simplicidade que acelerou mais o coração naquela tarde tão distante no tempo. O meu homem estava ali, á soleira da minha porta, como se a vida repetisse naquele instante o passado, chegando ao lado de seu irmão, o mais velho de Estevão Bittencourt, o filho que ainda era o mais vistoso , robusto e tão cheio de vantagens sobre o mais moço.
A porta foi aberta no mesmo instante em que abri meu coração. Alberto me olhou sem medo. A enfermidade e a iminência da morte pareciam-lhe revestir de coragem. Um olhar sem pressa, profundo, como se quisesse reconhecer um território antigo e de preciosas esperanças. Firmei meus olhos aos seus. O primeiro olhar sem a vitrine entre nós. Um olhar demorado, como se quiséssemos recolher no tempo no tempo passado as manhãs amanhecidas na distância, os filhos não fecundos, os beijos renunciados e as palavras que nunca foram pronunciadas. Um olhar que parecia escancarar o túmulo onde sepultei minha alegria. E depois do olhar, o sorriso. O único depois daquela manhã de sexta-feira, quando a vitrine ainda encorajava o amor oculto, proibido. Um sorriso autorizado pelo tempo e pela distância.
Segurei Alberto pela mão. Disse que era bom recebê-lo em minha casa. A sua resposta foi um sorriso tímido e molhado por uma lágrima silenciosa que meu marido não viu. A necessidade do repouso fez com que Alberto passasse os dias sem sair de casa. Ficava na sala comigo. Eu bordava enquanto ele me contava os detalhes da vida vivida na solidão em Rondônia. Meu marido trabalhava. Nunca houve um desrespeito entre nós. Sabíamos que não tínhamos o direito de ultrapassar os limites das palavras. Nós nos amávamos na solidão da carne, no silêncio das intenções. Não havia toques, se não os inusitados, ocorridos na entrega de um prato de sopa ou até mesmo numa ajuda para chegar até o quarto. Para mim não importava. Eu havia aprendido que o amor não carece de presença para existir.
Eu passei a minha vida inteira distante do homem amado, e agora tê-lo assim, tão perto, tão ao alcance dos meus olhos, já era demais para mim. Conversávamos horas e horas. Quase nunca tocávamos nos motivos dos nossos sofrimentos. Era uma forma de preservar-lhe a sacralidade. Certa feita, enquanto estendia as mãos para lhe entregar um copo de leite, ele olhou-me com ternura e disse que já podia morrer feliz. E assim foi. Quando a primavera cedeu lugar aos calores do verão, Alberto se despediu de mim de forma definitiva. A tarde era bonita e ensolarada. As cigarras gritavam de alegria descompassada de sua ressurreição gloriosa. Ele estava sentado no sofá. Pediu que eu chegasse mais perto e segurasse pela última vez sua mão. Eu o fiz.
Ele sorriu e perguntou : - Quer que eu dê algum recado a Deus? -Eu o olhei e com lágrimas nos olhos lhe disse: - Sim. Diga a Ele que Ele é injusto!
Sorrindo ainda mais do mesmo jeito que sorriu tantas vezes naquelas tardes de nossa única primavera, ele completou: - Não. Ele não é injusto. Ele me permitiu vir morrer ao seu lado! - E foi então que Alberto se despediu de mim com uma frase que ainda hoje não aprendi a esquecer. Olhou-me com profundidade e disse: - Uma vida inteira sem flores não é nada diante de uma única primavera florida! - Depois, foi perdendo o sorriso, apertou minha mão, suspirou e morreu.
Livro: Mulher de aço e de flores
Autor : Fábio de Melo
O amor completa os espaços. Supre as carências, suplanta os temores.
Mas a coragem não veio. O sim entre dentes confirmou minha covardia e desde então a desesperança tornou-se minha companhia de toda hora.
Na segunda-feira quando os últimos convidados retornaram ás suas origens, recebi a notícia de que Alberto fizera suas malas para acompanhar seu tio, Jordano Bittencourt, proprietário de grande contidade de terras em Rondônia. Não houve tempo para despedidas. Apenas a notícia impressa em poucas palavras em um bilhete que dizia: - Será mais fácil assim.
Mas não foi. Os dias passavam por mim com seu poder de demorar mais que o comum. Os primeiros meses, distante de Alberto, mediam anos e anos. O choro silencioso, abafado nos travesseiros, era um ritual que eu cumpria diariamente.
Os anos se passaram. Vinte e cinco primaveras floriram religiosamente. Os outonos e invernos cumpriam o destino de sepultar as cigarras. Vez ou outra meu coração, sepultado e sem a esperança da primavera, sofria das mesmas angústias do tempo de mocidade. Alberto nunca mais voltará a Santana dos Cristais. Nunca soube nada do seu paradeiro. Meu marido nunca desconfiou das tristezas do meu coração. Consolou-se na convicção de que havia se casando com uma mulher triste, uma cigarra sepultada e sem canto. Guardei meu segredo debaixo das terras ressequidas do meu coração e resolvi espera pela absolvição que nunca veio.
Quando setembro começava a mostrar os primeiros sinais de que a terra venceria mais uma vez os castigos do inverno, quando a ciranda do tempo acenava para a chegada da estação das flores, meu marido recebeu a notícia de que a mais de cinco anos, Jordano Bittencourt, seu tio, havia morrido. Vítima de uma febre misteriosa, não deixara herdeiros. Solteiro, dividia a vida e os trabalhos com o sobrinho, Alberto. O motivo da notícia não era comunicar a morte do tio, mas sim a enfermidade do irmão mais novo.
Sozinho naquelas terras, Alberto estava tuberculoso e sem ninguém que lhe dispensasse cuidados. Era o único irmão. Com os pais já falecidos, restava ao meu marido a responsabilidade de tomar as devidas providências. Numa tarde de primavera prenunciada, olhou-me com receios e perguntou-me se eu me importaria em ajudar a cuidar de seu irmão mais novo. Com o coração batendo na boca e sem nem uma condição de falar, limiteime a responder sem palavras.
Quando amanheceu o dia 22 de setembro, data que marcava o inicio da primavera, o carro vindo de tão longe parou á porta de minha casa. Um ruído seco de malas de couro era a trilha que acompanhava a cena. Eu, de pé parada na janela principal, e com o rosto entre as cortinas, procurei enxergar o que o coração viu a vida inteira, mesmo a distância.
Alberto estava mais franzino. O rosto envelhecido conservava o aspecto de menino solitário. O terno simples, os sapatos sem luxo e o chapéu reservado para ocasiões , conferiam-lhe a mesma simplicidade que acelerou mais o coração naquela tarde tão distante no tempo. O meu homem estava ali, á soleira da minha porta, como se a vida repetisse naquele instante o passado, chegando ao lado de seu irmão, o mais velho de Estevão Bittencourt, o filho que ainda era o mais vistoso , robusto e tão cheio de vantagens sobre o mais moço.
A porta foi aberta no mesmo instante em que abri meu coração. Alberto me olhou sem medo. A enfermidade e a iminência da morte pareciam-lhe revestir de coragem. Um olhar sem pressa, profundo, como se quisesse reconhecer um território antigo e de preciosas esperanças. Firmei meus olhos aos seus. O primeiro olhar sem a vitrine entre nós. Um olhar demorado, como se quiséssemos recolher no tempo no tempo passado as manhãs amanhecidas na distância, os filhos não fecundos, os beijos renunciados e as palavras que nunca foram pronunciadas. Um olhar que parecia escancarar o túmulo onde sepultei minha alegria. E depois do olhar, o sorriso. O único depois daquela manhã de sexta-feira, quando a vitrine ainda encorajava o amor oculto, proibido. Um sorriso autorizado pelo tempo e pela distância.
Segurei Alberto pela mão. Disse que era bom recebê-lo em minha casa. A sua resposta foi um sorriso tímido e molhado por uma lágrima silenciosa que meu marido não viu. A necessidade do repouso fez com que Alberto passasse os dias sem sair de casa. Ficava na sala comigo. Eu bordava enquanto ele me contava os detalhes da vida vivida na solidão em Rondônia. Meu marido trabalhava. Nunca houve um desrespeito entre nós. Sabíamos que não tínhamos o direito de ultrapassar os limites das palavras. Nós nos amávamos na solidão da carne, no silêncio das intenções. Não havia toques, se não os inusitados, ocorridos na entrega de um prato de sopa ou até mesmo numa ajuda para chegar até o quarto. Para mim não importava. Eu havia aprendido que o amor não carece de presença para existir.
Eu passei a minha vida inteira distante do homem amado, e agora tê-lo assim, tão perto, tão ao alcance dos meus olhos, já era demais para mim. Conversávamos horas e horas. Quase nunca tocávamos nos motivos dos nossos sofrimentos. Era uma forma de preservar-lhe a sacralidade. Certa feita, enquanto estendia as mãos para lhe entregar um copo de leite, ele olhou-me com ternura e disse que já podia morrer feliz. E assim foi. Quando a primavera cedeu lugar aos calores do verão, Alberto se despediu de mim de forma definitiva. A tarde era bonita e ensolarada. As cigarras gritavam de alegria descompassada de sua ressurreição gloriosa. Ele estava sentado no sofá. Pediu que eu chegasse mais perto e segurasse pela última vez sua mão. Eu o fiz.
Ele sorriu e perguntou : - Quer que eu dê algum recado a Deus? -Eu o olhei e com lágrimas nos olhos lhe disse: - Sim. Diga a Ele que Ele é injusto!
Sorrindo ainda mais do mesmo jeito que sorriu tantas vezes naquelas tardes de nossa única primavera, ele completou: - Não. Ele não é injusto. Ele me permitiu vir morrer ao seu lado! - E foi então que Alberto se despediu de mim com uma frase que ainda hoje não aprendi a esquecer. Olhou-me com profundidade e disse: - Uma vida inteira sem flores não é nada diante de uma única primavera florida! - Depois, foi perdendo o sorriso, apertou minha mão, suspirou e morreu.
Livro: Mulher de aço e de flores
Autor : Fábio de Melo
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