Domingo no táxi


Tem gente que não gosta de domingo. Tem gente que atribui ao domingo certa melancolia. Eu gosto de domingo. E, vez em quando, também gosto, não de melancolia, mas de alguma nostalgia. Baús, acolhedores do tempo, que continuam em nós e que visitamos e dos quais nos alimentamos. Alimento do passado que nos fortalece para o futuro.
Domingo passado, depois de uma longa caminhada a pé por São Paulo, peguei um táxi para voltar para casa. Quando entrei, o taxista gentilmente me cumprimentou e perguntou se eu me importava com a música. Eu disse que não. E que, aliás, gostava muito da música que estava tocando.

Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou 
Com uma carta na mão 
Ante surpresa tão rude, nem sei como pude 
Chegar ao portão
Lendo o envelope bonito e no seu sobrescrito
Eu reconheci 
A mesma caligrafia, que disse-me um dia 
Estou farto de ti 
Porém não tive coragem de abrir a mensagem 
Porque na incerteza 
Eu meditava e dizia: 
Será de alegria? 
Será de tristeza? 
Quanta verdade tristonha ou mentira risonha 
Uma carta nos traz 
E assim pensando rasguei tua carta e queimei 
Para não sofrer mais
O taxista cantarolava junto com Isaurinha Garcia. E comentava os trechos da música. Dizia da beleza das letras de antigamente.  Em cada música, uma história. Parece que o romantismo não tinha timidez e nos surpreendia. Imagine não abrir a carta? Não saber do conteúdo da sua mensagem. Mas havia uma razão, justificava o taxista, as histórias de dor causadas pelo remetente. Abrir para quê? Para sofrer mais?
Eu fiquei impressionado com a juventude do taxista e o seu tempero musical. Disse-me ele que o pai é cantador. Assim mesmo. Que canta o que aprendeu com o avô. Apenas em casa. Moram na Zona Sul de São Paulo. E ainda têm o hábito dos almoços de domingo em que a família se reúne e, sem televisão ligada, conversam e depois cantam.
Na sequência musical do taxista, uma outra canção. Dessa vez, na voz de Linda Batista:

Eu gostei tanto,
Tanto quando me contaram
Que lhe encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar,
E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz,
Não lhe deixou falar.
Eu gostei tanto,
Tanto, quando me contaram
Que tive mesmo de fazer esforço
Pra ninguém notar.
O remorso talvez seja a causa
Do seu desespero
Ela deve estar bem consciente
Do que praticou,
Me fazer passar tanta vergonha
Com um companheiro
E a vergonha
É a herança maior que meu pai me deixou;
Mas, enquanto houver força em meu peito,
Eu não quero mais nada
Só vingança, vingança, vingança
Aos santos clamar
Ela há de rolar como as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Pra poder descansar.
Disse ele que essa música já o acalentou em momentos de fossa. Dor de paixão. Eu quis saber se era bom nos alimentarmos de vingança, como diz a canção. Ele sorriu. E confessou que vez ou outra, sim. Dói demais saber que a mulher que nos amou está feliz nos braços de outro. E a prosa prosseguia entre as canções de outros tempos. Dos nossos tempos. Dos tempos de delicadeza. Quando desci do táxi, era essa a música que tocava, na voz de Chico Buarque:
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu
Disse o taxista que sua mulher está esperando o primeiro filho. E que ele gosta de cantar para a criança que ainda não nasceu. Canta encostado na barriga da amada. E sente que o filho gosta. Delicadezas de cantos desta grande cidade. Achei que deveria pagar um pouco mais a corrida. Mas tive receio de ofendê-lo. Elogiei a leveza e a alegria com que ele exercia seu ofício. E desci. 
Fiquei pensando em quantas histórias instigantes partem com os taxistas no momento em que seus passageiros descem. Conversas nervosas, conversas engraçadas, conversas de dor, conversas do dia a dia. Lembrei-me da coluna chamada “Táxi”, no Diário Nacional, em que Mário de Andrade, de 1929 a 1932, publicava suas crônicas. Não eram histórias como essa que conto aqui, mas igualmente prosaicas, sobre as acontecências do dia a dia das gentes de uma cidade que já se anunciava metrópole. Caleidoscópica. Aquecida pelos encontros inusitados de cada uma de suas esquinas. De cada uma de nossas corridas de táxi.
Tempos de delicadeza assim, num domingo ou em qualquer outro dia, embalam-nos canções mais sensíveis em tempos de pouca prosa.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 08/02/2015

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