Os flamboyants, por Rubem Alves

A manhã estava linda: céu azul, ventinho fresco. Infelizmente, muitas obrigações me aguardavam. Coisas que eu tinha de fazer. Aí, lembrei-me do menino-filósofo chamado Nietzsche que dizia que ficar em casa estudando, quando tudo é lindo lá fora, é uma evidência de estupidez. Mandei as obrigações às favas e fui caminhar na lagoa do Taquaral.

Bem, não fui mesmo caminhar. Meu desejo não era médico, caminhar para combater o colesterol. Caminhar, para mim, é uma desculpa para ver, para cheirar, para ouvir… Caminho para levar meus sentidos a dar um passeio. Tanta coisa: os patos, os gansos, os eucaliptos, as libélulas, a brisa acarinhando a pele — os pensamentos esquecidos dos deveres. Sem pensar, porque, como disse Caeiro, “pensar é estar doente dos olhos”. Aí, quando já me preparava para ir embora, já no carro, vejo um amigo. Paramos. Papeamos. Ele, com uma máquina fotográfica. Andava por lá, fotografando. Não tenho autorização para dizer o nome dele. Vou chamá-lo de Romeu, aquele que amava a Julieta. Me confidenciou: “Vou fazer uma surpresa para a Julieta. Ela adora os flamboyants. E eles estão maravilhosos. Vou fazer um álbum de fotografias de flamboyants para ela… Você não quer vir até a nossa casa para tomar um cafezinho?”

Fui. Mas ele me advertiu: “Não diga nada para ela. É surpresa…” Esta história tem sua continuação um pouco abaixo. Recomeço em outro lugar.

As crianças da 3ª série do Parthenon, escola linda, me convidaram para uma visita. Elas tinham estado fazendo um trabalho sobre um livrinho que escrevi, O Gambá Que Não Sabia Sorrir. Queriam me mostrar. Foi uma gostosura. É uma felicidade sentir-se amado pelas crianças. Eu me senti feliz. Aí aconteceu uma coisa que não estava no programa. Uma menininha, na hora das perguntas, disse que ela havia lido a minha crônica Se Eu Tiver Apenas Um Ano a Mais de Vida…

Espantei-me ao saber que uma menina de nove anos lia minhas crônicas. Lia e gostava. Lia e entendia. Aí ela acrescentou: “Recortei a crônica e trouxe para a professora…” Confirmou-se aquilo de que eu sempre suspeitara: as crianças são mais sábias que os adultos. Porque o fato é que muitos adultos ficaram espantados e não quiseram brincar de fazer de contas que eles tinham apenas um ano a mais para viver. Ficaram com medo. Acharam mórbido.

As crianças, inconscientemente, sabem que a vida é coisa muito frágil, feito uma bolha de sabão. Minha filha Raquel tinha apenas dois anos. Eram seis horas da manhã. Eu estava dormindo. Ela saiu da caminha dela e veio me acordar. Veio me acordar porque ela estava lutando com uma idéia que a fazia sofrer. Sacudiu-me, eu acordei, sorri para ela, e ela me disse: “Papai, quando você morrer você vai sentir saudades?” Eu fiquei pasmo, sem saber o que dizer. Mas aí ela me salvou: “Não chore porque eu vou abraçar você…”

As crianças sabem que a vida é marcada por perdas. As pessoas morrem, partem. Partindo, devem sentir saudades — porque a vida é tão boa! Por isso, o que nos resta fazer é abraçar o que amamos enquanto a bolha não estoura.

Os adultos não sabem disso porque foram educados. Um dos objetivos da educação é fazer-nos esquecer da morte. Você conhece alguma escola em que se fale sobre a morte com os alunos? É preciso esquecer da morte para levar a sério os deveres. Esquecidos da morte, a bolha de sabão vira esfera de aço. Inconscientes da morte aceitamos como naturais as cargas de repressão, sofrimento e frustração que a realidade social nos impõe. Quem sabe que a vida é bolha de sabão passa a desconfiar dos deveres… E, como disse Walt Whitmann, “quem anda duzentos metros sem vontade, anda seguindo o próprio funeral, vestindo a própria mortalha”.

O pessoal da poesia está levando a sério a brincadeira. Eu mesmo já fiz vários cortes drásticos em compromissos que assumi. Eram esferas de aço. Transformei-os em bolhas de sabão e os estourei. Pois o pessoal da poesia decidiu que, no programa de um ano de vida apenas, num dos nossos encontros não haveria leitura de poesia: haveria brinquedos e brincadeiras. Cada um trataria de desenterrar os brinquedos que os deveres haviam enterrado.

Obedeci. Abri o meu baú de brinquedos. Piões, corrupios, bilboquês, iô-iôs e uma infinidade de outros brinquedos que não têm nome. Seria indigno que eu levasse piões e não soubesse rodá-los. Peguei um pião e uma fieira e fui praticar. Estava rodando o pião no meu jardim quando um cliente chegou. Olhou-me espantado. Ele não imaginava que psicanalistas rodassem piões. Psicanalista é pessoa séria, ser do dever. Pião é coisa de criança, ser do prazer.

Acho que meus colegas psicanalistas concordariam com meu paciente. A teoria diz que um cliente nada deve saber da vida do psicanalista. O psicanalista deve ser apenas um espaço vazio, tela onde o paciente projeta suas identificações. Mas a minha vocação é a heresia. Ando na direção contrária. “Você sabe rodar piões?”, eu perguntei. Ele não sabia. Acho que ficou com inveja. A sessão de terapia foi sobre isso. E ele me disse que um dos seus maiores problemas era o medo do ridículo. Crianças são ridículas. Adultos não são ridículos. Aí conversamos sobre uma coisa sobre a qual eu nunca havia pensado: que, talvez, uma das funções da terapia seja fazer com que as pessoas não tenham medo das coisas que os “outros” definem como ridículo. Quem não tem medo do ridículo está livre do olhar dos outros.

Preparei o encontro de poesia de um jeito diferente. Nada de sopas sofisticadas. Fui procurar macarrão de letrinha, coisa de criança. Não encontrei. Encontrei estrelinhas. Fiz sopa de estrelinhas. E toda festa de criança tem de ter cachorro-quente. Fiz molho de cachorro-quente. E nada de vinho. Criança não gosta de vinho. Gosta é de guaraná.

Foi uma alegria, todo mundo brincando: iô-iôs, piões, corrupios, bilboquês, quebra-cabeças, pererecas (aquelas bolas coloridas na ponta de um elástico)… Rimos a mais não poder. Todo mundo ficou leve. Aí tive uma idéia que muito me divertiu: que na sala de visitas das casas houvesse um baú de brinquedos. Quando a conversa fica chata, a gente abre o baú de brinquedos e faz o convite: “Não gostaria de brincar com corrupio?” E a gente começa a brincar com o corrupio e a rir. A visita fica pasma. Não entende. “Quem sabe, ao invés do corrupio, um bilboquê?” E a gente brinca com o bilboquê. Aí a gente estende o brinquedo para a visita e diz: “Por favor, nada de acanhamentos! Experimente. Você vai gostar…” São duas as possibilidades. Primeira: a visita brinca e gosta e dá risadas. Segunda: ela acha que somos ridículos e trata de se despedir para nunca mais voltar…

Pois a Julieta — aquela do Romeu — me trouxe uma pipa de presente. Vou empinar a pipa em algum gramado da Unicamp. E aí ela nos contou da surpresa que lhe fizera o Romeu. Fotografias de flamboyants vermelhos — que coisa mais romântica! Árvores em chamas, incendiadas! Cada apaixonado é um flamboyant vermelho! E nos contou das coisas que o Romeu tivera que fazer para que ela não descobrisse o que ele estava preparando.

Mas o mais bonito foi o que ele lhe disse, na entrega do presente. Não sei se foi isso mesmo que ele disse. Sei que foi mais ou menos assim: “Sabe, Julieta, aquela história de ter um ano apenas a mais para viver… Pensei que você gostava de flamboyants e que você ficaria feliz com um álbum de flamboyants. E concluí que, se eu tiver um ano apenas a mais para viver, o que quero é fazer as coisas que farão você feliz…”

Um ano apenas a mais para viver: aí os sentimentos se tornam puros. As palavras que devem ser ditas, devem ser ditas agora. Os atos que devem ser feitos, devem ser feitos agora. Quem acha que vai viver muito tempo fica deixando tudo para depois. A vida ainda não começou. Vai começar depois da construção da casa, depois da educação dos filhos, depois da segurança financeira, depois da aposentadoria…

As flores dos flamboyants, dentro de poucos dias, terão caído. Assim é a vida. É preciso viver enquanto a chama do amor está queimando…


O texto acima foi extraído do jornal “Correio Popular”, de Campinas (SP), onde o escritor manteve, por muitos anos, sua coluna bissemanal.

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