Nove Regras a Ignorar Antes de se Apaixonar (Trecho de Livro)
Nove regras a ignorar antes de se apaixonar
1. Beijar alguém… apaixonadamente
2. Fumar charuto e beber uísque
3. Montar com as pernas abertas
4. Esgrimir
5. Assistir a um duelo
6. Disparar uma pistola
7. Jogar (em um clube para cavalheiros)
8. Dançar todas as danças de um baile
9. Ser considerada linda. Pelo menos uma vez.
PRÓLOGO
Londres, Inglaterra
Abril de 1813
Lady Calpúrnia Hartwell piscou para conter as lágrimas ao fugir do salão
de baile da Casa Worthington, o local de seu mais recente e devastador
constrangimento. Enquanto descia correndo os largos degraus de mármore,
o desespero encurtando seus passos e impulsionando-a para as sombras
dos vastos jardins escuros, era envolvida pelo bem-vindo ar da noite, fresco
com a promessa da primavera. Uma vez fora de vista, soltou um longo
suspiro e diminuiu a velocidade, finalmente a salvo. Sua mãe ficaria lívida
se descobrisse a filha mais velha do lado de fora, sem uma acompanhante,
mas nada poderia ter mantido Callie dentro daquele salão horrível.
Sua primeira temporada fora um fracasso completo.
Não fazia nem um mês que havia debutado. Filha mais velha do conde
e da condessa de Allendale, Callie deveria ser, por direito, a bela do baile.
Fora criada para essa vida – um mundo de danças graciosas, modos perfeitos
e beleza estonteante. Era aí que morava o problema, claro. Callie podia
até dançar bem e ter modos impecáveis, mas ser uma beldade? Era pragmá-
tica demais para acreditar nisso.
Eu devia ter imaginado que ia ser um desastre, pensou, ao se deixar cair
em um banco de mármore logo na entrada do labirinto de sebe dos jardins
de Worthington.
Passara três horas no baile e não havia sido tirada para dançar por um
pretendente que fosse minimamente pretendível. Após dois convites feitos
por célebres caçadores de fortunas, um de um chato absoluto e outro de um
barão que não podia ter menos que 70 anos, Callie não conseguira mais
fingir alegria. Estava claro que, para a alta-roda, ela não valia muito mais do
que seu dote e sua linhagem – e nem isso era suficiente para proporcionar
uma dança com um par de quem pudesse gostar. Não, a verdade era que
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Callie havia passado a maior parte da temporada sendo ignorada pelos solteiros
disponíveis, jovens e cobiçados.
Ela suspirou.
Esta noite fora a pior. Como se não bastasse ser visível apenas para os
chatos e os velhos, nesta noite ela sentira os olhares da alta sociedade.
– Nunca deveria ter deixado minha mãe me colocar no meio desta monstruosidade
– resmungou para si mesma, baixando os olhos para o vestido
com a cintura apertada demais e o espartilho pequeno além da conta, incapaz
de conter seus seios, bem maiores do que a moda ditava. Tinha certeza de que
nenhuma bela do baile jamais fora coroada em um tom tão vibrante de tangerina
ao pôr do sol. Ou com um traje tão horrendo, diga-se de passagem.
O vestido, sua mãe lhe garantira, era o auge da moda. Quando Callie sugerira
que não cairia bem em sua silhueta, a condessa afirmara que a filha
estava enganada. Callie ficaria deslumbrante, prometera a mãe, enquanto
a modista se movia depressa em volta dela, cutucando-a, espetando-a e
espremendo-a dentro da roupa. E, ao observar a transformação no espelho
da costureira, começara a concordar com as duas. Estava deslumbrante.
Deslumbrantemente horrorosa.
Abraçando-se com força para afastar o frio da noite, Callie fechou os
olhos, mortificada.
– Não posso voltar. Vou ter que viver aqui para sempre.
Uma risada grave soou das sombras e Callie se levantou com um solavanco,
arfando, surpresa. Ela se aprumou e tentou acalmar o coração disparado,
distinguindo de relance a silhueta de um homem. Falou antes que
pudesse pensar em fugir, deixando que a aversão por toda aquela noite permeasse
seu tom.
– O senhor não deveria se aproximar sorrateiramente das pessoas no
escuro. Não é próprio de um cavalheiro.
Ele respondeu depressa, envolvendo-a com a voz grave de tenor:
– Peço desculpas. É claro que poderia argumentar que espreitar na escuridão
não é exatamente próprio de uma dama.
– Ah. Nisso o senhor está enganado. Não estou espreitando na escuridão.
Estou me escondendo nela. Algo inteiramente diferente.
Callie se enfiou de novo nas sombras.
– Não vou entregá-la – prometeu ele, baixinho, lendo sua mente enquanto
avançava. – É melhor se revelar. Está completamente encurralada.
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À medida que o homem se aproximava, Callie sentiu a sebe espinhosa
atrás de si e percebeu que ele tinha razão. Suspirou, irritada. Quão pior esta
noite pode ficar? Naquele exato momento, o homem entrou em uma nesga
de luar, revelando sua identidade, e ela teve sua resposta. Muito pior.
Estava na companhia do marquês de Ralston – charmoso, devastadoramente
lindo e um dos mais notórios libertinos de Londres. Sua reputação
só era páreo para o sorriso imoral, que estava voltado diretamente para
Callie.
– Ah, não – murmurou ela, incapaz de afastar o desespero da voz.
Não podia deixar que ele a visse. Não assim, embalada feito um peru de
Natal. Um peru de Natal cor de tangerina ao pôr do sol.
– Qual o problema, mocinha?
Ainda que preguiçoso, o tratamento gentil, enquanto a jovem procurava
à sua volta por uma rota de fuga, tocou seu coração. O marquês estava
perto o bastante para encostar nela, avultando-se acima de Callie, uns bons
quinze centímetros mais alto do que ela. Sentiu-se pequena pela primeira
vez em muito tempo. Delicada, até. Tinha que fugir.
– Eu… Tenho que ir. Se me encontrarem aqui… com o senhor… – deixou
a frase por terminar.
Ele sabia o que iria acontecer.
– Quem é a senhorita? – Os olhos do marquês se franziram na escuridão,
analisando os ângulos suaves do jovem rosto. – Espere… – Ela imaginou o
brilho de reconhecimento em seu olhar. – É a filha de Allendale. Eu a notei
mais cedo.
Callie não pôde conter uma resposta sarcástica:
– Não tenho nenhuma dúvida, milorde. Seria realmente muito difí-
cil me ignorar. – E cobriu a boca assim que falou, assustada por seu tom
presunçoso.
Ele deu uma risadinha.
– É. Bem, não é dos vestidos mais interessantes.
Callie não conseguiu segurar o riso.
– Que diplomático da sua parte. Pode admitir. Pareço demais com um
damasco.
Dessa vez, o marquês soltou uma gargalhada.
– Uma comparação adequada. Mas fico imaginando: será que há um
ponto em que alguém se parece o suficiente com um damasco?
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Ele fez um gesto para que ela retomasse seu lugar no banco e, após um
momento de hesitação, Callie aquiesceu.
– Provavelmente não. – E abriu um largo sorriso, surpresa por não estar
nem de perto tão humilhada com a concordância dele quanto seria de imaginar.
Na verdade, a sensação foi bastante libertadora. – Minha mãe morre
de vontade de ter uma filha que possa vestir como uma boneca de porcelana.
Infelizmente, nunca vou ser essa pessoa. Não vejo a hora de minha irmã
debutar e desviar a atenção para ela.
Ralston se juntou a Callie no banco e perguntou:
– Quantos anos tem a sua irmã?
– Oito – respondeu ela, pesarosa.
– Ah. Não é o ideal.
– Um belo de um eufemismo. – Callie ergueu os olhos para o céu estrelado.
– Não, quando ela finalmente for apresentada à sociedade, vou estar
acostumada à solteirice há muito tempo.
– O que a faz ter tanta certeza disso?
Callie lançou uma olhadela enviesada para o marquês.
– Apesar de gostar do seu cavalheirismo, milorde, essa ignorância fingida
nos insulta a ambos. – Na ausência de uma resposta, a jovem fitou as
mãos e acrescentou: – Minhas opções são um tanto limitadas.
– Como assim?
– Pelo jeito, posso escolher entre os pobres, os velhos e os mortalmente
chatos – respondeu ela, marcando as categorias com os dedos ao falar.
Ele deu uma risadinha.
– Acho difícil de acreditar.
– Mas é verdade. Não sou o tipo de moça que os cavalheiros perseguem.
Qualquer um que tenha olhos pode ver isso.
– Tenho olhos. E não vejo nada disso.
Ele baixou a voz, adotando um tom suave e macio como veludo, e estendeu
a mão para acariciar a bochecha da jovem.
A respiração dela falhou e Callie se espantou com quanto estava ciente
do próprio corpo naquele momento. Em seguida, inclinou-se para perto
da mão dele, incapaz de resistir, enquanto o marquês a movia para segurar
seu queixo.
– Qual é o seu nome? – perguntou, baixinho.
Ela estremeceu, sabendo o que viria a seguir.
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– Calpúrnia.
Então fechou os olhos por vergonha do nome extravagante; um nome
que só uma mãe incorrigivelmente romântica e com uma obsessão doentia
por Shakespeare pensaria em dar como fardo para uma criança carregar.
– Calpúrnia. – Ele testou o nome na língua. – Como a esposa de César?
O rubor aumentou enquanto ela assentia.
Ele sorriu.
– Devo me assegurar de conhecer melhor os seus pais. Trata-se de um
nome, no mínimo, ousado.
– É um nome horrível.
– Bobagem. Calpúrnia foi imperatriz de Roma, era forte, linda e mais
inteligente do que os homens à sua volta. Viu o futuro e se manteve firme
frente ao assassinato do marido. É um nome maravilhoso – afirmou, ainda
segurando firmemente o queixo dela.
Diante do discurso sincero, Callie ficou muda. Antes que tivesse chance
de responder, o marquês continuou:
– Agora tenho que ir. E a senhorita, lady Calpúrnia, deve voltar para o
salão de baile de cabeça erguida. Acha que pode fazer isso?
Ele deu um tapinha final no queixo dela e ficou de pé, deixando-a decepcionada
com sua partida.
A jovem se levantou com ele e assentiu, sonhadora.
– Sim, milorde.
– Muito bem. – Então ele se aproximou e sussurrou, o hálito soprando os
pelos em sua nuca e aquecendo-a no ar frio da noite de abril: – Lembre-se,
é uma imperatriz. Comporte-se como uma e as pessoas não terão opção
que não a enxergar como tal. Eu já posso ver… – ele fez uma pausa e Callie
prendeu a respiração, esperando –…Vossa Alteza.
E, com isso, partiu, desaparecendo no labirinto e deixando-a com um
sorriso bobo no rosto. Callie não pensou duas vezes antes de segui-lo, tão
entusiasmada estava para ficar perto dele. Naquele momento, o teria seguido
a qualquer lugar, aquele príncipe entre os homens que prestara atenção
nela, não em seu dote ou em seu vestido horroroso, mas nela!
Se sou uma imperatriz, ele é o único homem digno de ser meu imperador.
Não teve que ir longe para alcançá-lo. Alguns metros adiante, o labirinto
se abria em uma clareira com um grande e cintilante chafariz adornado
com querubins. Lá, banhado por um brilho prateado, estava seu príncipe,
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os ombros largos e as pernas longas. A jovem prendeu a respiração ao vê-lo
– primoroso, como se ele próprio fosse esculpido em mármore.
E então percebeu a mulher em seus braços. Callie abriu a boca em um
arfar silencioso, levando as mãos aos lábios enquanto arregalava os olhos.
Em todos os seus 17 anos, nunca testemunhara algo tão… maravilhosamente
escandaloso.
O luar envolvia a amante dele em uma luz etérea, o cabelo louro transformado
em branco, a gaze de seu vestido clara na escuridão. Callie voltou
para as sombras, espiando pela beirada da sebe, quase desejando não o ter
seguido, absolutamente incapaz de desviar o olhar daquele enlace. Nossa,
como se beijavam.
E, bem no fundo de seu estômago, a surpresa juvenil foi substituída por
uma chama lenta de inveja, pois nunca em toda a sua vida quisera tanto ser
outra pessoa. Por um momento, permitiu-se imaginar que era ela nos bra-
ços do marquês, que os dedos longos e delicados que corriam pelo cabelo
escuro e brilhante eram os seus, e que era o seu corpo pequeno que as mãos
fortes dele acariciavam e modelavam, e os seus lábios que ele mordiscava,
e os seus gemidos que fluíam pelo ar noturno, arrancados por aquelas
carícias.
Ao ver os lábios dele descerem pelo longo pescoço da mulher, Callie correu
os dedos pelo mesmo caminho no próprio pescoço, levada pela tenta-
ção de fingir que o toque leve como pluma era dele. Ficou olhando a mão
do marquês subir pelo corselete liso e curvilíneo da amante e agarrar a
ponta do decote delicado, puxando-a para baixo e desnudando um seio
pequeno e arrebitado. Ao fitar o montinho perfeito, os dentes do marquês
brilharam num sorriso malicioso e, com uma única palavra – “Lindo” –, ele
levou os lábios até a extremidade escura e enrijecida pelo ar frio e o abraço
quente. Sua amante jogou a cabeça para trás em êxtase, perdendo-se no
prazer naqueles braços, e Callie não conseguia desviar os olhos do espetá-
culo, roçando a mão junto ao próprio seio, sentindo a ponta endurecer sob
a seda do vestido, imaginando que era a mão dele, a boca dele, nela.
– Ralston…
Sussurrado em meio a um gemido feminino, o nome varou a clareira,
despertando Callie de seu devaneio. Atônita, ela abaixou a mão e se afastou
com um rodopio da cena na qual havia se intrometido. Correu pelo labirinto,
desesperada para escapar, e parou mais uma vez no banco de már-
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more onde seu passeio pelo jardim havia começado. Ofegando, tentou se
recompor, abismada com seu comportamento. Damas não espionavam. E
certamente não espionavam daquela maneira.
Além do mais, fantasias não ajudariam em nada.
A jovem afastou uma pontada devastadora de tristeza conforme era dominada
pela realidade. Nunca teria o magnífico marquês de Ralston, nem
ninguém como ele. Encheu-se de uma certeza absoluta de que as coisas que
ele lhe dissera mais cedo não eram verdade, mas sim as mentiras de um
sedutor inveterado, escolhidas com cuidado para acalmá-la e dispensá-la
casualmente, facilitando o encontro no escuro com sua beldade arrebatadora.
O marquês não acreditava em nenhuma palavra do que dissera.
Não, ela não era Calpúrnia, imperatriz de Roma. Era a mesma Callie sem
graça que sempre fora. E que sempre seria.
UM
Londres, Inglaterra
Abril de 1823
Ele acordou com o barulho de murros insistentes.
Ignorou-os a princípio, o sono turvando a fonte do ruído irritante.
Houve uma longa pausa e um silêncio denso recaiu sobre o quarto.
Gabriel St. John, marquês de Ralston, observou a luz da alvorada banhando
o aposento luxuriosamente decorado. Permaneceu imóvel por um instante,
assimilando os matizes ricos do quarto adornado com papéis de parede
de seda e detalhes dourados, um refúgio extravagante de prazer sensual.
Esticando o braço para a mulher exuberante ao seu lado, um meio sorriso
brincou em seus lábios, conforme ela moldava o corpo nu e disposto ao
toque dele. O calor daquele contato, aliado ao fato de ser ainda tão cedo, o
fez voltar a um estado de torpor.
Ficou deitado, os olhos fechados, correndo a ponta dos dedos indolentemente
pelo ombro nu da companheira de cama, enquanto uma graciosa
mão feminina acariciava a superfície rígida de seu torso, a direção da carí-
cia uma promessa erótica obscura.
O toque dela ficou mais forte e firme, e ele recompensou suas habilidades
com um rosnado grave de prazer.
E os murros recomeçaram – altos e constantes na pesada porta de carvalho.
– Já chega!
Gabriel se ergueu da cama da amante, pronto para aterrorizar o intruso
e fazer com que ele o deixasse em paz pelo restante da manhã. Mal havia
vestido o roupão de seda, abriu a porta com um palavrão raivoso.
Deparou-se com o irmão gêmeo, impecavelmente vestido como se fosse
muito normal procurar um parente na casa da amante ao raiar do dia. Atrás
de Nicholas St. John, um criado gaguejava:
– Milorde, fiz o que pude para impedi-lo de…
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Um olhar gélido de Gabriel deteve as palavras do homem.
– Deixe-nos.
Nick esperou o lacaio se afastar, com uma sobrancelha arqueada,
divertindo-se.
– Tinha me esquecido quão encantador você é pela manhã, Gabriel.
– O que, em nome de Deus, o traz aqui a esta hora?
– Fui à Casa Ralston primeiro – respondeu Nick. – Como não o encontrei,
este pareceu o lugar mais provável. – Ele correu o olhar para além do irmão,
pousando-o na mulher sentada no meio da cama enorme. Com um sorriso
lânguido, acenou para ela. – Nastasia. Minhas desculpas pela intrusão.
A beleza grega se espreguiçou como um gato, sensual e indolente, permitindo
que o lençol que segurava em modéstia fingida escorregasse e revelasse
um seio voluptuoso. Um sorriso provocante brincou em seus lábios,
enquanto dizia:
– Lorde Nicholas, garanto que não estou nem um pouco chateada. Talvez
queira se juntar a nós… – fez uma pausa sugestiva –… para o café da manhã.
Nick sorriu, agradecido.
– Uma oferta tentadora.
Ignorando a interação, Gabriel os interrompeu:
– Nick, se está precisando tanto de companhia feminina, tenho certeza
de que poderíamos ter lhe arranjado um destino que não perturbasse sumariamente
o meu descanso.
Nick se recostou no vão da porta, permitindo que seu olhar se demorasse
em Nastasia antes de voltar a atenção para Gabriel.
– Estava descansando, irmão?
Gabriel se afastou da porta a passos largos, em direção a uma pia no canto
do quarto, bufando enquanto jogava a água revigorante no rosto.
– Está se divertindo, não é?
– Imensamente.
– Tem poucos segundos para me dizer por que está aqui, Nick, antes que
eu me canse de ter um irmão mais novo e o expulse.
– Curioso que tenha escolhido essa expressão tão relevante – observou
Nick, casualmente. – Na verdade, é pela sua posição como irmão mais velho
que estou aqui.
Gabriel levantou a cabeça para encará-lo, a água escorrendo pelo rosto.
– Sabe, parece que temos uma irmã.
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– Uma meia-irmã.
Gabriel falava inexpressivamente, fitando o advogado enquanto aguardava
que o homem de óculos superasse o nervosismo e explicasse as circunstâncias
do anúncio inesperado. O marquês havia aperfeiçoado a tática
da intimidação em antros de jogo por toda a Londres e torcia para que não
demorasse a fazer o homenzinho falar.
Não demorou.
– Eu… quero dizer, milorde…
Gabriel o interrompeu, atravessando o gabinete a passos largos para se
servir de uma bebida:
– Fale, homem. Não tenho o dia inteiro.
– Sua mãe…
– Minha mãe, se é que se pode usar tal palavra para a criatura pouco
amorosa que nos gerou, partiu da Inglaterra há mais de 25 anos. – Ele girou
o líquido âmbar no copo, simulando um ar de tédio. – Como podemos
acreditar que essa menina é nossa irmã, e não uma charlatã ansiosa para se
aproveitar da nossa boa vontade?
– O pai dela era um mercador veneziano com muito dinheiro e deixou
todas as suas posses para a filha. – O advogado fez uma pausa, ajeitando
os óculos com cautela e avaliando o marquês, assustado. – Milorde, ele não
tinha nenhum motivo para mentir sobre a origem dela. Na verdade, de
acordo com todos os relatos que recolhi, parece que teria preferido não os
alertar de sua existência.
– Então por que o fez?
– A jovem não possui outro parente conhecido, apesar de terem me
dito que havia amigos dispostos a acolhê-la. De acordo com os documentos
que foram enviados ao meu escritório, no entanto, isso é obra de sua
mãe. Ela pediu que o… – gaguejou, inseguro – marido… mandasse sua…
irmã… para cá, caso ele morresse. Sua mãe tinha certeza de que os senhores
iriam… – ele pigarreou –… honrar a família.
O sorriso de Gabriel não transmitia humor.
– Irônico, não é, que nossa mãe tenha recorrido ao nosso senso de obrigação
familiar?
O advogado não fingiu que não havia entendido o comentário:
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– Sem dúvida, milorde. Mas, se me permite, a jovem está aqui e é muito
dócil. Não sei bem o que fazer com ela.
Ele não prosseguiu, mas sua intenção foi compreendida. Não sei bem se
devo deixá-la em suas mãos.
– Claro que ela deve ficar aqui – afirmou Nick, afinal, atraindo a grata
atenção do advogado e um olhar irritado do irmão. – Vamos acolhê-la. Ela
deve estar em choque, imagino.
– Sem dúvida, milorde – concordou rapidamente o homem, agarrando-
-se à bondade na expressão de Nick.
– Não sabia que tinha autoridade para tomar tais decisões nesta casa,
irmão – comentou Gabriel, sem desviar o olhar do advogado.
– Só estou encurtando a agonia de Wingate – respondeu Nick, com um
aceno para o advogado. – Sei que não vai rejeitar o próprio sangue.
Nick estava certo, claro. Gabriel St. John, sétimo marquês de Ralston,
não negaria sua irmã, por mais que o desejasse. Passando uma das mãos
pelo cabelo preto, Gabriel ponderou sobre a raiva que ainda ardia ao pensar
na mãe, com quem não falava havia décadas.
Ela se casara jovem – mal havia completado 16 anos – e, em menos de
um ano, dera à luz filhos gêmeos. Partira para o continente uma década
depois, deixando os filhos e o pai deles desesperados. Fosse qualquer outra
mulher, Gabriel teria sentido empatia, teria entendido o medo e perdoado
a deserção. Mas havia testemunhado a tristeza do pai e sentido a dor que a
perda de uma mãe pode causar. A raiva substituíra a tristeza. Anos se passaram
antes que pudesse falar nela sem que um nó de fúria subisse em sua
garganta.
E agora, ao descobrir que ela havia destruído outra família, a ferida fora
reaberta. Enfurecia-o o fato de que a mãe tivesse gerado outra criança –
uma menina, ainda por cima – e a abandonado. Mas ela tinha razão, claro:
Gabriel honraria a família. Faria o possível para expiar os pecados da mãe.
E talvez essa fosse a parte mais irritante da situação toda – o fato de que a
mãe ainda o compreendesse. Que ainda pudesse haver uma ligação entre
os dois.
Gabriel pousou os óculos na mesa, retomando seu lugar atrás da larga
escrivaninha de mogno.
– Onde está a menina, Wingate?
– Creio que foi levada até a sala verde, milorde.
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– Bem, é melhor irmos buscá-la.
Nick caminhou até a porta, abriu-a e pediu a um criado que a trouxesse.
No pesado silêncio que se seguiu, Wingate se levantou, alisando, ansioso,
o colete.
– Sem dúvida. Se me permite, senhor.
Gabriel o fitou com um olhar irritado.
– É uma boa menina. Muito doce.
– Sim. Já mencionou isso. Ao contrário de sua óbvia opinião sobre mim,
Wingate, não sou um ogro com predileção por meninas. – Fez uma pausa,
lançando um meio sorriso para o advogado. – Pelo menos, não meninas de
quem sou parente.
A chegada da irmã impediu Gabriel de se deleitar com a desaprovação
do advogado. Em vez disso, levantou-se assim que a porta se abriu, franzindo
a testa diante dos olhos azuis assustadoramente familiares que o fitavam
do outro lado do aposento, da mesma altura que os seus.
– Deus do céu! – As palavras de Nick espelhavam os pensamentos de
Gabriel.
Não havia dúvidas de que a moça era irmã deles. Além dos olhos, do
mesmo tom profundo de azul que o dos gêmeos, tinha também o maxilar
forte deles e o cabelo escuro e cacheado. Era a imagem da mãe – alta, graciosa,
encantadora e com um fogo inquestionável no olhar. Gabriel praguejou
baixinho.
Nick recobrou a compostura primeiro, curvando-se em uma reverência
demorada.
– Encantado, Srta. Juliana. Sou seu irmão, Nicholas St. John. E esse – fez
um gesto na direção do marquês – é o nosso irmão, Gabriel, marquês de
Ralston.
A jovem fez uma mesura graciosa, depois indicou a si mesma com um
gesto delicado.
– Sou Juliana Fiori. Confesso que não estava esperando… – ela fez uma
pausa, procurando o termo –… gemelli. Minhas desculpas. Não sei a palavra
no seu idioma.
Nick sorriu.
– Gêmeos. Pois é, imagino que nossa mãe também não esperava gemelli.
A covinha na bochecha de Juliana era igualzinha à de Nick.
– De fato, é bastante impressionante – comentou ela.
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– Bem… – Wingate pigarreou, chamando a atenção dos demais. – Se
meus senhores não precisam mais de mim, devo partir.
O homenzinho olhou de Nick para Gabriel, ansioso para ser liberado.
– Pode ir, Wingate – disse o marquês, num tom gélido. – Na verdade,
estou ansioso por isso.
O advogado saiu, fazendo uma reverência rápida, como se temesse nunca
escapar caso permanecesse por tempo de mais. Depois que ele havia
deixado o aposento, Nick consolou Juliana:
– Não se deixe enganar por Gabriel. Não é tão perverso quanto parece.
Só que às vezes gosta de dar uma de chefe da família.
– Creio que sou o chefe da família, Nicholas – observou Gabriel, secamente.
Nick piscou para a irmã.
– Quatro minutos mais velho e não consegue não jogar na minha cara.
Juliana ofereceu um sorrisinho a Nick antes de voltar os olhos azul-claros
para o irmão mais velho.
– Milorde, gostaria de ir.
Gabriel assentiu.
– É compreensível. Vou mandar que suas coisas sejam levadas para um
dos quartos no andar de cima. Deve estar cansada de suas viagens.
– Não. O senhor não entendeu. Gostaria de ir embora da Inglaterra.
Voltar a Veneza. – Diante do silêncio dos irmãos, ela continuou, movendo
as mãos no ritmo de suas palavras, o sotaque aumentando conforme a
emoção se infiltrava em seu discurso. – Garanto-lhes que não compreendo
por que meu pai insistiu que eu viesse para cá. Tenho amigos na Itália que
ficariam mais do que satisfeitos em me acolher…
Gabriel a interrompeu com firmeza:
– A senhorita vai ficar aqui.
– Mi scusi, milorde. Preferiria não ficar.
– Temo que não tenha escolha.
– Não pode me manter aqui. Não é o meu lugar. Não com os senhores…
Não na… Inglaterra. – Ela cuspiu a palavra como se tivesse um gosto ruim.
– Esquece-se de que é metade inglesa, Juliana – comentou Nick, divertido.
– De jeito nenhum! Sou italiana! – Seus olhos azuis faiscaram.
– E sua personalidade confirma isso, mocinha – comentou Gabriel. –
Mas é o retrato de nossa mãe.
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Juliana olhou para as paredes.
– Retrato? De nossa mãe? Onde?
Nick deu uma risadinha, encantado com o equívoco.
– Não. Não vai encontrar nenhum retrato dela aqui. O que Gabriel estava
dizendo é que se parece com a nossa mãe. É exatamente como ela, na
verdade. Uma semelhança impressionante.
Juliana golpeou o ar com uma das mãos.
– Nunca mais me diga uma coisa dessas. Nossa mãe era uma… – a jovem
se conteve, o silêncio no aposento pesado com a palavra não dita.
Os lábios de Gabriel se contorceram em um sorriso enviesado.
– Vejo que concordamos em algo.
– Não pode me forçar a ficar.
– Sinto muito, mas posso. Já assinei os documentos. Está sob minha proteção
até se casar.
Os olhos dela se arregalaram.
– Impossível. Meu pai nunca teria exigido tal coisa. Sabia que não tenho
intenção de me casar.
– Por que não? – perguntou Nick.
Juliana voltou-se para ele.
– Pensei que entenderiam melhor do que a maioria. Não vou repetir os
pecados de minha mãe.
Os olhos de Gabriel se estreitaram.
– Não há absolutamente nenhum motivo para que a senhorita seja de
qualquer maneira como…
– Perdoe-me se não estou disposta a assumir tal risco, milorde. Certamente
podemos chegar a um acordo.
Naquele momento, Gabriel tomou sua decisão.
– A senhorita não conheceu nossa mãe?
Juliana manteve-se perfeitamente ereta e orgulhosa, fitando-o nos olhos,
sem pestanejar.
– Faz quase dez anos que ela nos deixou. Creio que fez o mesmo com sua
família, não?
Gabriel assentiu.
– Não tínhamos nem 10 anos.
– Então imagino que nenhum de nós morra de amores por ela.
– Não mesmo.
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Ficaram assim por um longo momento, cada um testando a verdade das
palavras do outro. Gabriel falou primeiro:
– Vou lhe oferecer um acordo. – Juliana balançou a cabeça em uma negativa
imediata, antes de Gabriel erguer a mão e detê-la. – Isto não é uma
negociação. A senhorita vai ficar por dois meses. Se, depois desse tempo,
decidir que prefere voltar para a Itália, faço os arranjos.
Juliana inclinou a cabeça para o lado como se estivesse considerando a
oferta e as possibilidades de fuga. Por fim, assentiu com um único gesto.
– Dois meses. Nem um dia a mais.
– Pode escolher um dos quartos no andar de cima, irmãzinha.
Ela se abaixou em uma reverência exagerada.
– Grazie, milorde.
Em seguida, virou-se na direção da porta do gabinete, mas foi detida
pela curiosidade de Nick.
– Quantos anos tem?
– Vinte.
Nick lançou um olhar fugaz para o irmão antes de continuar:
– Vai precisar ser apresentada à sociedade de Londres.
– Acho que não será necessário, já que só vou ficar por oito semanas. –
Era impossível ignorar a ênfase nas últimas palavras.
– Discutiremos isso quando estiver acomodada. – Gabriel encerrou a
conversa e a acompanhou pelo aposento, abrindo a porta do gabinete e
chamando o mordomo. – Jenkins, por favor, acompanhe a Srta. Juliana ao
andar de cima e mande alguém ajudar sua criada a desfazer as malas. – E
voltando-se para Juliana: – Tem uma criada, não tem?
– Tenho – respondeu ela, o divertimento cruzando seus lábios. – Devo
lembrá-lo de que foram os romanos que trouxeram a civilização para o seu
país?
Gabriel ergueu uma das sobrancelhas.
– A senhorita planeja ser um desafio, não é?
Juliana sorriu angelicalmente.
– Concordei em ficar, milorde. Não em ficar calada.
O marquês voltou-se para Jenkins.
– Ela vai ficar conosco daqui por diante.
Juliana balançou a cabeça, fitando o irmão nos olhos.
– Por dois meses.
24
Com um aceno de cabeça, ele corrigiu a declaração:
– Ela vai ficar conosco por enquanto.
O mordomo nem piscou diante do surpreendente anúncio, apenas disse
calmamente:
– Entendido, milorde.
Em seguida, mandou depressa vários lacaios para carregarem os baús
de Juliana até o andar de cima, antes de conduzi-la para fora do aposento.
Satisfeito de que seria obedecido, Gabriel fechou a porta do gabinete e
voltou-se para Nick, que estava recostado no aparador, ostentando um sorriso
indolente.
– Bom trabalho, irmão – comentou Nick. – Se a alta-roda soubesse que
tem um senso tão profundo de obrigação familiar… sua reputação de anjo
caído estaria arruinada.
– Melhor parar de falar.
– Sério, é tocante. O marquês de Ralston, em toda a sua perversidade.
Derrotado por uma criança.
Gabriel deu as costas para o irmão e atravessou a sala a passos largos até
a escrivaninha.
– Nick, não tem uma estátua em algum lugar precisando de uma limpeza?
Uma senhora idosa de Bath com um mármore carecendo desesperadamente
de identificação?
Nick esticou as pernas e cruzou uma bota brilhante por cima da outra,
recusando-se a morder a isca do irmão.
– Para falar a verdade, tem, sim. No entanto, ela e todas as minhas legiões
de fãs vão ter que esperar. Prefiro muito mais passar a tarde com você.
– Não se prenda por minha causa.
Nick ficou sério.
– O que vai acontecer quando tiverem se passado dois meses? Quando
ela ainda quiser ir embora e você não puder permitir? – Diante do silêncio
do irmão e da ausência de resposta, Nick pressionou: – Não tem sido fácil
para ela. Abandonada pela mãe em uma idade tão tenra… E depois perdeu
o pai também.
– Não é diferente das nossas próprias circunstâncias. – Gabriel fingiu
desinteresse, enquanto verificava uma pilha de correspondência. – Na verdade,
devo lembrá-lo de que perdemos nosso pai junto com nossa mãe.
O olhar de Nick não vacilou.
25
– Tínhamos um ao outro, Gabriel. Ela não tem ninguém. Sabemos melhor
do que qualquer um como é estar na posição dela; ser abandonado por
todo mundo que você já teve… todo mundo que já amou.
Gabriel fitou Nick nos olhos, o ar sombrio diante das lembranças que
partilhava com o irmão. Os gêmeos haviam sobrevivido à deserção da mãe,
à entrega do pai ao desespero. A infância deles não fora agradável, mas
Nick estava certo – tinham tido um ao outro. E isso fizera diferença.
– A única coisa que aprendi com o exemplo de nossos pais é que o amor é
supervalorizado. O que importa é a responsabilidade. A honra. Vai ser melhor
para Juliana aprender isso ainda jovem. Ela tem a nós, agora. E provavelmente
não considera isso grande coisa. Mas vai ter que ser o suficiente.
Os irmãos ficaram em silêncio, cada um perdido nos próprios pensamentos.
Por fim, Nick acrescentou:
– Vai ser difícil fazer a sociedade a aceitar.
Gabriel praguejou com veemência, reconhecendo a verdade nas palavras
do irmão.
Como a mãe não tivera um divórcio adequado, Juliana não seria imediatamente
aceita na alta-roda. No melhor dos casos, era filha de uma dama
exilada da sociedade civilizada e teria que lutar para afastar o pesado manto
da reputação maculada da mãe. No pior, era o fruto ilegítimo de uma marquesa
desonrada com seu amante plebeu italiano.
Nick prosseguiu:
– A legitimidade dela será questionada.
Gabriel pensou por um longo momento.
– Para se casar com o pai dela, nossa mãe deve ter se convertido ao catolicismo
quando chegou à Itália. A Igreja católica nunca teria reconhecido
seu casamento na Igreja anglicana.
– Ah, então nós que somos ilegítimos. – As palavras de Nick foram pontuadas
com um sorriso enviesado.
– Para os italianos, pelo menos – retrucou Gabriel. – Por sorte, somos
ingleses.
– Excelente. Para nós, está ótimo – concordou Nick –, mas e quanto a
Juliana? Muitos vão se recusar a conviver com ela. Não vão gostar do fato
de que é filha de uma mulher desonrada. E católica, ainda por cima.
– Já não aceitariam Juliana de qualquer forma. Não podemos mudar o
fato de que seu pai é um plebeu.
26
– Talvez devêssemos tentar apresentá-la como uma prima distante, em
vez de irmã.
A resposta de Gabriel foi definitiva:
– De jeito nenhum. Ela é nossa irmã. Iremos apresentá-la como tal e
enfrentar as consequências.
– É ela quem vai enfrentar as consequências. – Nick fitou o irmão nos
olhos, enquanto as palavras pairavam no ar, pesadas. – A temporada logo
vai estar a todo vapor. Se quisermos que isso dê certo, temos de nos portar
com a mais absoluta correção. Nossa reputação é a dela.
Gabriel entendeu o recado. Teria que encerrar o envolvimento com Nastasia
– a cantora de ópera era famosa pela indiscrição.
– Vou falar com Nastasia hoje mesmo.
Nick assentiu, antes de acrescentar:
– E Juliana vai precisar ser apresentada à sociedade. Por alguém de caráter
impecável.
– Pensei a mesma coisa.
– Sempre podemos recorrer à tia Phyllidia. – Nick estremeceu só de se referir
à irmã do pai, que, apesar das opiniões enfáticas e do jeito ríspido com
que distribuía ordens, era uma duquesa-viúva e um pilar da alta sociedade.
– Não. – A resposta de Gabriel foi curta e imediata. Phyllidia não seria
capaz de lidar com uma situação tão delicada quanto aquela, uma irmã
misteriosa e desconhecida batendo à porta da Casa Ralston no início da
temporada. – Nenhuma das mulheres da nossa família serve.
– Então, quem?
Os olhares dos gêmeos se fixaram um no outro. Eles se encaram por um
tempo. A mesma determinação e o mesmo comprometimento.
Mas só um era marquês. E suas palavras não davam margem a perguntas.
– Vou achar alguém.
Fonte: http://www.editoraarqueiro.com.br/
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