O primeiro amor

Há livros, à exaustão, que falam do primeiro amor e que nos enveredam pelos mais auspiciosos sentimentos do romantismo. Há canções de amor para todos os gostos. Canções que nos ajudam a atar os olhares e as promessas de amanhãs. Há canções e poemas de recomeços, desabafos exagerados de vida que segue sem as amarras de um amor que findou ou que nem chegou a existir. Embalava o amor em versos, Drummond, nosso poeta:
“Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?”
(...)
“Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.”
O primeiro amor não se trata apenas de Eros, o deus brincalhão que nos fere com sua flecha e nos impede o raciocínio. Paixão que nos embriaga de necessidades, de reciprocidades, de dizeres que nos acalmem. O primeiro amor trata-se, também, de primeiro desejo ou mais profundamente de primeira aspiração.
Imagine um cantor que foi trocando os chuveiros pelos palcos. Mesmo os modestos. E que, a cada show, se lembrava da impressão primeira de subir em um palco e cantar. Ou o artista em sua estreia e nas tantas outras apresentações que se sucederam em sua carreira. Mas sempre com o sabor da primeira impressão, do primeiro amor ao palco.
Sou um artesão das letras e sou grato a todas as pessoas que me deram oportunidade de juntar palavras expressando os significados que brotam das minhas crenças. Crenças que aprendo com os meus irmãos de ofício, lendo os que se foram e os que ainda estão por aqui. Meu primeiro amor, meu primeiro livro, meu primeiro contato com alguns leitores que comentavam as personagens que eu criava e crio.
Sou grato a este jornal, O "Diário de São Paulo", por permitir que, nestas linhas, eu me comunique com leitores que generosamente usam parte do seu tempo para ler os meus escritos. Honra minha. Responsabilidade também.
Neste espaço, durante este ano, falei algumas vezes sobre um homem que, com sua simplicidade e decisão, vem nos servindo de referencial. O Papa Francisco. E, nesta semana, ele falou em "primeiro amor" quando usou algumas incisivas reflexões para os seus irmãos no sacerdócio. Falou o papa em "Alzheimer espiritual" ou esquecimento do primeiro amor de um religioso com a história da sua entrega ao Senhor. Um sacerdote que se distancia do Senhor transforma suas atividades em atos mecânicos. Repete como uma máquina, sem refletir sobre o significado de suas orações. Foi mais a fundo o Santo Padre, falou dos que se sentem imortais ou insubstituíveis e os convidou a visitarem os cemitérios para se lembrarem de que "somos pó e ao pó voltaremos". Falou em empedernimento ou perda da sensibilidade. "É perigoso perder a sensibilidade humana necessária que nos faz chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram! É a doença dos que perdem os ‘sentimentos de Jesus’ porque o seu coração, com o passar do tempo, endurece e torna-se incapaz de amar incondicionalmente ao Pai e ao próximo”. Falou em esquizofrenia espiritual, em hipocrisia, em rivalidade e vanglória. Criticou a sisudez e elogiou o bom humor. Criticou as torpes palavras que servem para destruir o outro, a fofoca, o maldizer e abençoou os encontros generosos.
Há tanto de sabedoria nos dizeres desse homem que impressiona o mundo com sua capacidade de fazer pontes, de dialogar, de unir os homens nos mais elevados sentimentos de compaixão e amor.
O primeiro amor é combustível para que os vícios nos abandonem. Se o discurso do papa se dirigia aos membros da cúpula do Vaticano, é útil para qualquer cidadão que se esquece do primeiro amor e vive das migalhas que sobram dos ódios lançados contra o seu irmão. 
Quão nobre é o ofício do médico ou do enfermeiro que cuidam de vidas e quão tosca é sua atuação quando se transformam em burocratas de procedimentos e se esquecem das razões que os motivaram a dedicar a vida a amenizar a dor. 
O fim do ano é tempo de agradecimentos e de propósitos. Para agradecer, é preciso recordar. Lembrar o que se foi e que merece ser revisitado. Agradecer o que se conquistou e às pessoas que foram essenciais nessa conquista. Agradecer o que se perdeu porque talvez não coubesse junto com outras conquistas que vieram. Lembrar os inícios. Do primeiro amor que gerou uma família ou uma amizade ou uma profissão ou uma incursão por uma ação que mudou a vida de pessoas. E ter propósitos. Que o primeiro amor se converta em um eterno amor. “O amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos”, poetizou Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. Nos enlaces de Eros, a paixão vai se transformando em cumplicidade que desafia o tempo. Como é lindo ver um casal que se reinventa nos ditos românticos depois de 20, 30, 40 anos ou mais de relação. Como é bonito ver um juiz que, depois de 30 anos de carreira, ainda se lembra do primeiro amor em um primeiro julgamento em que foi capaz de fazer justiça. Ou de um construtor que nunca esquece a primeira edificação. 
Edifiquemos no próximo ano, junto ao altar das nossas capacidades, a nossa disposição de vencer as doenças da alma que nos afastam do outro e de nós mesmos. 
Ao primeiro amor, o brinde de ano novo! 
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 28/12/2014

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